Ao longo das últimas semanas, a Uber vem perdendo praticamente um executivo importante por dia. Anteontem, foi o vice-presidente de negócios, Emil Michael que pediu demissão; ontem foi a vez do CEO, Travis Kalanick, tirar uma licença de prazo indeterminado da empresa. E mais executivos importantes ainda podem se despedir nos próximos dias.
Pode parecer que algum incidente terrível aconteceu na empresa nas últimas semanas. Mas a verdade é que uma série de casos de machismo, assédio sexual, abuso de poder e práticas de mercado irregulares tem ocorrido praticamente desde que a Uber foi fundada. E, agora, uma investigação lançada pela própria empresa para avaliar a verdadeira extensão desses problemas está chegando à alta diretoria da Uber. Por isso todas as saídas e demissões.
O começo dos abalos
O primeiro impacto que a Uber sofreu foi no começo desse ano, quando Donald Trump tentou impedir que muçulmanos entrassem nos Estados Unidos. Naquela ocasião, taxistas que estavam perto do aeroporto JFK em Nova York, nos Estados Unidos, fizeram uma greve. E, durante essa greve, a Uber desativou a tarifa dinâmica na região.
Na ocasião, a empresa se justificou dizendo que queria ajudar as pessoas que estavam chegando ao país em meio àquele tumulto a ir para suas casas e hotéis. Mas, para boa parte dos estadunidenses e da imprensa de lá, a impressão que ficou era que a empresa estava tentando usar a oportunidade para se promover. Mais que isso: ela estava ajudando a enfraquecer um protesto dos cidadãos do país contra uma lei xenofóbica.
Isso fez com que usuários começassem a boicotar a empresa – e não foi um movimento pequeno. No começo de fevereiro, o aplicativo já tinha perdido mais de 200 mil usuários. O ritmo em que esses usuários saíram foi tão rápido que a Uber foi obrigada a automatizar o sistema de apagamento de contas. E era só o começo.
A denúncia de Susan
No dia 19 de fevereiro, uma ex-engenheira da Uber chamada Susan J. Fowler publicou um texto detalhando o ano que ela passou trabalhando lá e os motivos que a levaram a sair da empresa. Em seu extenso relato, Fowler conta que foi exposta a situações desconfortáveis de assédio sexual desde o primeiro dia em que trabalhou lá.
Quando Fowler relatava os abusos ao RH, ouvia do setor que não havia nada a ser feito. Nesses casos, tentava mudar de equipe para não continuar trabalhando com seus assediadores. Com o tempo, Fowler conversou com outras engenheiras da empresa e descobriu que as situações que tinha vivenciado haviam acontecido com quase todas que trabalhavam lá, sempre com a conivência do departamento de RH. Executivos que tinham bom desempenho eram protegidos de denúncias desse tipo.
Fowler então começou a ter pedidos de transferência negados por razões mal-explicadas, e chegou a ouvir do RH da empresa que poderia ser demitida caso continuasse a fazer denúncias. Diante dessa situação, ela preferiu pedir as contas.
Reação
Depois da história de Fowler viralizar, o CEO da Uber falou pelo Twitter que as situações relatadas lá eram “abomináveis e contrárias a tudo em que acreditamos”. Então Ariana Huffington, que faz parte do conselho da Uber, propôs ao CEO que investigações extensivas sobre os casos que Fowler descreveu. Kalanick aceitou, e a empresa começou a avaliar os problemas de sua cultura.
Mas o relato de Fowler também empoderou outras ex (e atuais) funcionárias da empresa a relatar os casos de machismo pelos quais tinham passado. E foi ficando cada vez mais claro que os abusos sofridos pela ex-engenheira não eram apenas “casos isolados”, mas frutos de uma cultura intrinsecamente machista e injusta de dentro da empresa.
Nessa mesma época, a Uber foi acusada de usar um software para “fugir da polícia” quando operava em locais onde não era autorizada. Dias depois, a empresa disse que pararia de usá-lo, mas o caso deu origem a uma investigação criminal contra a empresa nos EUA que ainda está correndo.
E, no mesmo mês, a Bloomberg divulgou um vídeo no qual Kalanick discutia com um motorista de Uber. O CEO da empresa mais tarde se desculpou pelo vídeo, e aproveitou a situação para fazer uma autocrítica, dizendo que precisava amadurecer.
A reação dos usuários do serviço a essas informações fez o incidente do aeroporto JFK ficar parecendo um sonho erótico da empresa. Uma nova onda de boicotes veio, alimentada pela hashtag #deleteuber, e o número de usuários perdidos cresceu para mais de 500 mil antes do fim de março. E, em meio a essas polêmicas, o então presidente da empresa, Jeff Jones, decidiu sair do emprego.
Quanto mais mexe, mais fede
Obviamente, a empresa se pronunciou sobre essa situação toda. O tom de sua comunicação foi o de prometer mudanças, e de admitir que todos esses acontecimentos haviam deixado claro que a maneira como eles faziam negócios tinha sérios problemas. E a extensão desses problemas foi se mostrando cada vez maior conforme as investigações da própria empresa avançavam.
Um caso especialmente marcante nesse aspecto foi o de uma mulher indiana que foi estuprada por um motorista de Uber chamado Shiv Kumar Yadav. O estuprador foi preso, mas a fragilidade dos serviços da Uber ficou evidente: a empresa sequer puxou a ficha de antecedentes criminais de Yadav (pois, se o tivesse feito, teria visto que ele já tinha passagens pela polícia). E o mal-estar da empresa com o governo indiano tomou tais proporções que a Uber ficou vários meses banida da Índia.
Publicamente, a Uber se mostrou solidária à passageira. Mas um grupo de altos executivos da empresa suspeitou que o caso não passava de um plano de sua principal concorrente na Ásia para sujar sua imagem. Eric Alexander, que era gerente regional da empresa, foi atrás dos registros médicos da vítima e passou a conduzir uma investigação paralela sobre o caso, com a conivência do CEO da Uber e de seu vice presidente, Emil Michael. Meses depois, Alexander seria demitido pela investigação.
Embora esse tenha sido o caso mais grave envolvendo uma vítima, ele possivelmente não foi o único. Imagens vazadas na internet sugeriram que a empresa teve que lidar com mais de 6 mil casos de violência sexual ao longo de três anos.
O Caso da Waymo
Como se tudo isso não fosse o bastante, a empresa também foi acusada de roubar tecnologia de carros autônomos da Waymo, uma empresa da qual o Google é dono. Além de processar a empresa pelo roubo de tecnologia, a Google também está tentando impedir que a Uber siga em seu projeto de desenvolver carros autônomos usando a tecnologia “roubada”.
Boa parte do caso girou em torno do engenheiro Anthony Lewandowski, que trabalhava na Waymo e foi para a Uber – supostamente levando consigo uma série de documentos sobre projetos da Waymo. Lewandowski se negou a cooperar com as investigações, reivindicando seus direitos da Quinta Emenda e alegando que não podia produzir provas contra si mesmo. Por conta dessa sua atitude, a Uber demitiu o engenheiro.
Acontecimentos recentes
Em paralelo a esse caso, as investigações da Uber continuaram a levantar evidências documentais sobre o ambiente estranho de trabalho da empresa. Exemplo disso é um e-mail de tom surpreendentemente juvenil enviado por Kalanick a todos os funcionários da empresa antes de uma festa comemorativa da firma.
Nos últimos dias, as investigações da empresa chegaram ao seu escalão mais alto. Emil Michael, o “número dois” da Uber, pediu demissão, deixando a empresa sem vice-presidente de negócios e de engenharia, além de sem lideranças na área financeira, de operações e de marketing. E ontem o próprio CEO da empresa anunciou que ficaria afastado do cargo por tempo indeterminado.
E agora?
Por mais que pareça que a Uber está acabada, esse é só o começo. As investigações devem continuar, e novas lideranças devem assumir os postos deixados vagos. Espera-se que elas corrijam os problemas estruturais que a empresa tinha e permitam que ela volte a crescer, dessa vez de uma maneira mais justa, diversa, igualitária e cooperativa com as leis e regulações de cada mercado.
Por outro lado, a questão toda é: elas vão mudar alguma coisa? Será mesmo que a Uber conseguirá mudar a cultura empresarial nociva que deu origem a todas essas situações abomináveis? Ou será que todas essas investigações e autocríticas da Uber são só “para inglês ver”, e não pretendem alterar de maneira significativa a forma como a empresa faz negócios?
O fato de que a empresa já perdeu tantos executivos importantes leva a crer que é a segunda opção. De certa forma, os problemas da Uber são problemas que boa parte das empresas têm – quantas delas se aventuram a investigar e corrigir esses problemas, levando o processo às suas últimas consequências?
Mas a Uber, por seu tamanho e importância, tem sido colocada em foco. Afinal, ela é um dos maiores exemplos de startups que deram certo, e gerencia um serviço que funciona no mundo todo. Além disso, ela é uma empresa de capital aberto: o dinheiro que ela usa para se manter operando vem de investidores que pretendem, algum dia, ver essa grana voltar com juros.
Por isso, seus acionistas estão dispostos a fazer o que quer que seja para que a empresa mantenha uma boa reputação e venha a se tornar lucrativa – e se isso significa que boa parte dos executivos precisam perder os cargos, que assim seja.
O fato é que o aplicativo Uber provavelmente não vai deixar de funcionar no futuro próximo e a empresa Uber não vai falir ou fechar as portas. O mercado de aplicativos de carona é valioso demais para que uma de suas principais empresas abandone a corrida, seja qual for o motivo. Mas a Uber precisa resgatar sua imagem se quiser se manter competitiva no futuro um pouco mais distante.