Os problemas que parte da população que deveria receber o auxílio emergencial teve em relação ao sistema da Caixa e a demora na avaliação dos requisitos, trouxe de volta a discussão sobre a criação de um “supercadastro” para os brasileiros. A necessidade de centralizar as informações sobre a população brasileira, foi levantada novamente pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), que faz parte da comissão de enfrentamento à Covid-19.
“Caso tivéssemos um cadastro único nacional, em momentos de calamidade pública como o que vivemos, agilizaria a localização do público exato dos auxílios, evitando-se fraudes”, afirmou a senadora quando fez o requerimento de audiência pública sobre o tema, aprovada na última segunda-feira (25).
A ideia não é nova. Em outubro do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro aprovou os decretos 10.046 e 10.047, que respectivamente dão origem ao Cadastro Base do Cidadão (CBC) e o Comitê Central de Governança de Dados (CCGD). Estes serviços criam uma mega base de dados disponível para o governo com todas as informações dos cidadãos brasileiros: CPF, RG ou filiação, mas também, dados laborais e biométricos.
O problema é que essas medidas vão contra a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), principal regulamentação de privacidade no Brasil. Embora ainda não esteja totalmente implementada, ela determina que os dados só podem ser usados para o mesmo fim que foram permitidos (como um cadastro na farmácia, que só pode servir para ganhar desconto), que os cidadãos podem exigir alteração e o apagamento dos dados fornecidos.
Para o pesquisador sênior em Inovação do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), Alexandre Barbosa, a proposta do Senado tem chances de ter mais sucesso do que o decreto do Governo Federal. “Um processo legislativo conta com uma participação maior e um engajamento da sociedade civil que permite uma discussão mais ampla. Assim não só é possível garantir menções diretas à LGPD, como obedecer aos mesmos termos e diretrizes e o Marco Civil da Internet”, afirma o pesquisador.
Cadastros centralizados, especialmente para sistemas de gestão de políticas de proteção social, não são uma novidade. O próprio CadÚnico – Cadastro Único para Programas Sociais, criado em 2007 e uma das bases para se conceder o auxílio emergencial – “é um exemplo internacionalmente reconhecido”, explica Barbosa. A questão está em como viabilizar o compartilhamento de informações entre os cadastros do administrativo já existentes.
“Isso passa pela necessidade de um sistema da identificação digital robusto, que permita que todo cidadão seja realmente incluindo nesse processo e que seja integrado com esses cadastros administrativos que estão fragmentados”, avalia Barbosa.
Esse sistema, como não poderia deixar de ser, deve atender princípios básicos de privacidade previstos na LGPD, como a definição da finalidade específica, a garantia de que esses dados serão criptografados e anonimizados, além de apontar uma necessidade específica para a transferência das informações. O banco de dados ainda deve ser gerido pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais, prevista na lei, mas pendente de criação.
A criação de um cadastro único centralizado com todas as informações dos cidadãos ainda dá margem para um perfilamento que pode ser utilizado para fins de discriminação, de acordo com o pesquisador da ITS. “Por exemplo, é possível determinar que um e certo benefício ou política pública só vai para um grupo determinado da sociedade, seja por orientação política, de acordo com a renda, ou por gênero. Esse mal uso pode gerar uma perseguição. Nunca se sabe o que será feito pelas mãos de um estado vigilante”, acredita Barbosa.
Na sua defesa do requerimento, a senadora Eliziane Gama lembra que, no cadastro para o auxílio emergencial, o governo constatou que boa parte dos 46 milhões de brasileiros vulneráveis eram também “invisíveis”: sem conta em banco, acesso regular aÌ€ internet ou CPF ativo. Para o pesquisador do ITS, esse é um problema de longo prazo que não pode ser resolvido com esse cadastramento.
“No Brasil, um em cada quatro pessoas não usa Internet. Metade dos domicílios nas áreas rurais e das classes D e E não possuem acesso à rede. Então para que criar um novo cadastro e classificá-lo como ‘digital’? Por que não repensar o sistema de identificação e promover uma identidade digital universal no Brasil, construída com debate multisetorial?”, questiona Barbosa.