Nesta semana, a corrida por uma vacina contra a Covid-19 ganhou um novo líder. A farmacêutica Pfizer anunciou o primeiro resultado positivo, ainda que preliminar, de fase 3, com 90% de eficácia na proteção dos voluntários. A notícia, no entanto, é mais do que apenas um sucesso contra o coronavírus; ela é também a demonstração da funcionalidade de uma nova tecnologia para vacinas.

A Pfizer e outras empresas farmacêuticas têm apostado em uma plataforma genética para produção de imunidade contra a Covid-19. O uso da tecnologia é inédito para produção de vacinas, apesar de mais de uma década de experimentos e expectativa que nunca se concretizaram em um produto.

O método mais comum utilizado pelas vacinas genéticas é o mRNA (RNA mensageiro), utilizado pela Pfizer. É a técnica escolhida por pelo menos 21 das pesquisas em andamento no mundo reconhecidas pela Organização Mundial de Saúde, que estão em diferentes etapas dos estudos. Elas diferem nas minúcias, mas o conceito é similar entre todas elas.

Como funciona?

O ensino sobre vacinas faz parte do currículo estudantil brasileiro, mas ele não é completo. A escola ensina que a imunização produzida por elas é resultado da inoculação de um vírus inativo ou atenuado no paciente, que produz uma resposta como se estivesse sob ataque de uma ameaça real.

Essas são apenas uma parte das possibilidades para uma vacina, apesar de serem reconhecidamente as mais tradicionais, com resultados comprovados ao longo de décadas de estudos. Com a Covid-19, no entanto, as empresas decidiram abrir a caixa de ferramentas e apostar em novas abordagens, como as genéticas.

Em vez de injetar um vírus no paciente, essas vacinas contam com um método diferente de “enganar” o organismo. Elas contêm apenas uma série de instruções em uma sequência de RNA sintético envolta por nanopartículas lipídicas (ou uma pequena capa de gordura, para usarmos termos mais próximos do cotidiano).

Esse RNA sintético é absorvido pelas células, que interpretam as instruções e começam a produzir proteínas virais. Ou seja: um pedacinho do vírus é gerado pelo organismo do paciente vacinado. O sistema imunológico então entende que as partículas são uma ameaça e começa a produzir a resposta, que também será válida para neutralizar um ataque real.

Não afeta o seu genoma

A expressão “genética” vinculada a esse tipo de vacina cria alguma confusão, mas é necessário que fique claro: ela não afeta o genoma dos pacientes. Ela não chega nem perto de alterar seu código genético, e se mantém dentro das células por apenas algumas horas antes de se desfazer.

Neste período, a única coisa que ele fará será alterar o funcionamento de algumas células diretamente afetadas por um tempo, permitindo a produção de proteínas virais. Ela não afeta todo o organismo, nem traz alterações permanentes, como explica Brent R. Stockwell, professor de biologia e química na Universidade de Columbia nos Estados Unidos, em entrevista à Associated Press. Ela não vai invadir o núcleo da célula para afetar o código genético, e se a célula se duplicar, apenas o material original será multiplicado.

A utilização do mRNA replica o processo de uma infecção viral. Quando um vírus entra nas células, ele não afeta o material genético do hospedeiro (pelo menos na maioria dos casos), mas apenas “sequestra” seus sistemas para produzir cópias. No caso da vacina, não há instruções para a multiplicação do vírus, apenas da sua proteína externa.

Não há risco de desenvolver a doença

Como mencionado acima, as vacinas de mRNA contam apenas com instruções para produção da “casca” do coronavírus, como explica Alta Charo, professora de bioética na Universidade de Wisconsin em Madison, nos Estados Unidos, em entrevista à Deutsche Welle. Mais especificamente as proteínas que formam os espinhos que você pode ver em qualquer ilustração do vírus.

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Os espinhos do vírus são produzidos pelas células e passam a ser alvo do sistema imunológico

Isso significa que a pessoa vacinada não corre o risco de produzir o vírus por conta própria, já que não há instruções para que suas células façam isso.

Neste ponto, as vacinas de mRNA são seguras. Existem outras técnicas, mais especificamente a de vírus atenuados, que não estão totalmente inativos, que trazem algum risco para pessoas com imunodeficiência, crianças e idosos. Em casos raríssimos, nestas pessoas que já tem o sistema imunológico prejudicado, é possível haver uma mutação que pode fazer com que a vacina induza o desenvolvimento da doença que deveria evitar. Não é um risco que exista com a técnica de mRNA.

Há questões técnicas

Uma dificuldade que precisará ser enfrentada para a distribuição em grande escala da vacina da Pfizer é a logística. A tecnologia de RNA depende de armazenamento muito frio para que o composto não se degrade, com temperaturas abaixo de -75 graus Celsius, o que depende de equipamento potente e especializado.

Esse requisito deve dificultar bastante a distribuição da vacina em regiões com pouca infraestrutura, como acontece em boa parte do interior do Brasil.

A empresa diz em entrevista à revista brasileira Veja que tem trabalhado na embalagem da vacina para facilitar a distribuição. A caixa é projetada para manter a temperatura estável por um período de 15 dias; após o prazo, é possível renovar o gelo seco na embalagem por mais 15 dias e repetir o procedimento mais uma vez, garantindo até 45 dias de estabilidade. A empresa também diz que o composto consegue se manter por até 5 dias em condições normais de refrigeração.

Já a Moderna, outra companhia que está liderando os esforços de vacinas com mRNA diz que o seu composto pode manter a estabilidade com temperaturas de -20 graus. É menos complicado, mas também não é simples.

Arma poderosa contra outras pandemias

Se a vacina de mRNA se provar tão eficaz quanto a análise preliminar da Pfizer índica, será uma boa notícia não só para o combate à Covid-19, mas também para outras pandemias que podem ocorrer no futuro. Isso porque seu desenvolvimento tem potencial para ser mais rápido, permitindo uma resposta mais ágil contra a ameaça.

Primeiro, porque essas vacinas são relativamente simples de serem produzidas, encurtando o período de ensaios pré-clínicos, antes dos testes com humanos, permitindo selecionar múltiplas cadeias de mRNA e testar rapidamente se elas produzem o resultado que se espera.

Robin Shattock, pesquisador do Imperial College, explica à Wired que, quando o coronavírus apareceu, após a publicação do sequenciamento genético do vírus, sua equipe se comprometeu a experimentar a tecnologia de mRNA e ele define o processo como “plug-and-play”. Os pesquisadores já trabalhavam com a plataforma para pesquisar outras vacinas, como Ebola e HIV. Quando decidiram atacar o Sars-Cov-2, bastou trocar as informações genéticas do vírus do Ebola para as do coronavírus. O mesmo aconteceu com a Moderna, uma companhia que pegou o mundo de surpresa no início do ano pela agilidade com que seus testes pré-clínicos avançaram para os testes com humanos.

Também é mais fácil de escalar sua produção, já que se trata apenas um produto químico sintético, e não um vírus que precisa ser produzido em ovos ou células. Pensando na urgência da vacina em uma situação como a atual, não é um ponto que pode ser ignorado.