Brasil caminha para o tecno-autoritarismo, alerta MIT

Decreto do governo autorizaria a coleta quase sem limites dos dados biométricos dos cidadãos; pandemia de Covid-19 estaria acelerando o processo de vigilância
Redação15/09/2020 16h16, atualizada em 16/09/2020 11h10

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Brasil está caminhando para o tecno-autoritarismo, segundo reportagem da revista de tecnologia do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), Technology Review. Um decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, em outubro de 2019, obriga os órgãos federais a compartilharem os dados de registros de cidadãos brasileiros em uma única base de dados, o Cadastro Base do Cidadão.

O país, que sempre vinha adotando medidas democráticas, no que diz respeito a governança na internet, como a criação do Comitê Gestor da Internet, em 1995, que definia os princípios básicos da governança na rede, e o Marco Civil da Internet – lei que visa estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o usuário da internet -, em 2014, começou a adotar um caminho considerado cada vez mais autoritário.

Segundo o governo, ao criar o Cadastro, as barreiras para a troca de informações são reduzidas, o que aumentaria a qualidade e a consistência dos dados obtidos. Isso poderia melhorar os serviços públicos e diminuir a possibilidade de fraude eleitoral, afirma o governo. Em um país de dimensões continentais, esse sistema poderia acelerar a entrega dos benefícios à população e tornar as políticas públicas mais eficientes.

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Governo brasileiro autoriza coleta de dados dos brasileiros por meio de decreto e põe em risco as liberdades individuais. Imagem: Wutzkohphoto/Shutterstock

Entretanto, os críticos do presidente alertam para o risco dessa concentração de dados diante da possibilidade de perda da liberdade individual. Além disso, a pandemia de Covid-19 estaria acelerando esse processo de vigilância, utilizando a crise como justificativa para capturar os dados das pessoas.

O Cadastro pode ter nascido com boas intenções, afirma Ronaldo Lemos, advogado do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade). Segundo ele, de fato a pandemia revelou a necessidade de se criar algum tipo de sistema de identidade digital nacional. Porém, ele alerta que essa centralização é preocupante. Há algum tempo, ele defende um modelo onde não haja nenhuma agência governamental com todos os dados concentrados em um único local.

O modelo proposto é utilizado pelo governo da Estônia. Lá, os estonianos precisam dar permissão para que uma agência acesse os dados que outra agência mantém, podendo, assim, rastrear quem está olhando os seus dados.

Risco à segurança

Com o decreto, qualquer órgão federal poderia começar a coletar os dados de terceiros. De acordo com o The Intercept, a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) solicitou ao SERPRO (Serviço Federal de Processamento de Dados) o registro de 76 milhões de brasileiros.

A quantidade de informações que o decreto autoriza é bastante ampla. Além de nome, estado civil e emprego, o Cadastro poderá incluir todo tipo de dados biométricos, tais como rosto, voz, íris, escaneamento de retina e digitais. Também não há limites sobre como esses dados poderão ser compartilhados e a lista ainda inclui sequenciamento genético. Para Ronaldo Lemos, a ideia é identificar as pessoas facilmente, sem que elas saibam como.

Além de todo o risco à liberdade civil e particular das pessoas, centralizar todos esses dados é um enorme risco à segurança. Um vazamento poderia expor os cidadãos a toda sorte de roubo de identidades, fraudes ou coisa ainda pior.

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Lei de Proteção de Dados, que entraria em vigor em agosto, foi adiada para 2021. Imagem: Anton Balazh

O Cadastro, vale lembrar, será regulado pelo Comitê Central de Governança de Dados. O órgão decidirá que dados poderão ou não ser adquiridos e se pronunciará sobre quaisquer controvérsias existentes. Entretanto, isso vai ao encontro do que diz o Comitê Diretor da Internet criado em 1995, pois não há no Comitê cidadãos, nem comunidade técnica ou qualquer pessoa da sociedade civil participando.

Ainda não está claro, também, como esse banco de dados será compatível com a nova lei de proteção de dados. Há contradições entre a lei e o decreto. Os dados biométricos, por exemplo, são considerados confidenciais de acordo com a lei, mas o decreto afirma que eles se enquadram em uma categoria de menor proteção.

A própria Lei de Proteção de Dados ainda é uma incógnita. Ela, que deveria entrar em vigor em agosto, já teve suas proteções atenuadas tanto por Bolsonaro, quanto por Michel Temer. Em abril desse ano, o governo tentou atrasar a implementação da lei para 2021.

Medo justificado

Em função da pandemia, o Governador de São Paulo, João Dória, lançou um projeto em abril utilizando dados de telefones para rastrear as pessoas que não estivessem respeitando as medidas de isolamento. Apesar do presidente ter agido contra essa medida, apenas uma semana depois determinou que as operadoras de telefonia entregassem os dados de 226 milhões de pessoas ao IBGE. A medida foi considerada inconstitucional e acabou derrubada pelo STF.

As deficiências tecnológicas, principalmente as de reconhecimento facial, são amplamente conhecidas. A maior parte dos programas foram desenvolvidos em países, cuja maioria das pessoas é branca, fato que causa deficiência e apresenta erros de identificação em outras pessoas, o que representa um problema potencialmente grande para o Brasil, que possui mais da metade da população negra ou parda.

A América Latina é uma região que, infelizmente, sempre flertou com governos autoritários e ditatoriais, e a lembrança dessas políticas são, ainda, muito recentes. Apenas a ideia de que seus dados podem ser controlados pelos governos é suficiente para deixar qualquer cidadão bastante preocupado.

Fonte: MIT Technology Review

Colaboração para o Olhar Digital

Redação é colaboração para o olhar digital no Olhar Digital