O leilão das frequências do 5G pode ter sido adiado por conta da pandemia de Covid-19, mas isso não impediu a tecnologia de começar a ser implementada no Brasil. Empresas de telecomunicações e operadoras começaram a implementar o 5G DSS no país, que é uma forma de driblar temporariamente as limitações da falta de frequências utilizando as destinadas ao 4G para oferecer conexões no patamar da nova geração da internet móvel.

Mas o que essa nova tecnologia pode oferecer e o que ela não pode e por que a indústria julgou tão importante lançá-la agora, durante a pandemia? Para responder essas e outras questões sobre o 5G, o Olhar Digital conversou com Cristiano Amon, presidente global da Qualcomm, para esclarecer alguns dos temas ligados à nova geração das redes móveis no Brasil e no mundo.

Confira a entrevista: (Nota: a entrevista a seguir foi editada por motivos de clareza e brevidade)

Olhar Digital: Como funciona o 5G DSS em comparação com o 5G padrão?

Cristiano Amon: O 5G foi desenvolvido para ser justamente é uma tecnologia bastante flexível, capaz de suportar tanto velocidade de vários gigabits por segundo até velocidades baixas, que a gente chama de Massive Internet das Coisas. É a primeira tecnologia que tem essa flexibilidade de vários níveis de velocidade e permite escolhas entre velocidade e confiabilidade de rede.

Ela foi desenvolvida para poder utilizar todo o espectro existente até o momento na indústria mais espectro novo, indo até a faixa da onda milimétrica. Conforme surgem as novas gerações de tecnologias, para aumentar a velocidade de transmissão de dados e a capacidade das redes, a largura dos canais aumenta. Na época do CDMA, era um canal de um 1,25 MHz; quando veio 3G WCDMA, o UMTS o canal passou a ser de 5 MHz. Com o 4G atual, os canais são de 10, 15, ou 20 MHz. Com 5G, os canais são de 100, 200 ou até 800 MHz. Então todo espectro acumulado pelas operadoras desde o 2G até hoje nos leilões equivale a um ou dois canais de 5G. 

O 5G foi desenvolvido que você pudesse ter utilização de todos perto de radiofrequência. As frequências de 4G passam a ser convertidas; depois, a banda média, chamada de sub-6, usada na frequência de 3,5 GHz, e na sequência as ondas milimétricas. Com o DSS, é a primeira vez na indústria em que essa conversão de espectro é feita de forma dinâmica. A tecnologia permite criar uma rede 5G na frequência do 4G, sem precisar desligar um para ligar outro. É uma forma de introduzir usuários na rede 5G sem ter que limpar o espectro. 

A Claro é uma das operadoras pioneiras na tecnologia DSS que é utilizada nos Estados Unidos, na Europa, e também chegará à China e à Coreia do Sul e em todos os países. É uma solução criativa para uma necessidade do mercado. Não tem leilão? Não importa, vamos em frente.

OD: A implementação do 5G DSS pode afetar o desempenho do 4G?

CA: O DSS é pensado para viabilizar a migração e conversão, não para manter todos os usuários do 4G e adicionar os do 5G. Eu não vejo prejuízo ao serviço do 4G, mas é necessário completar a migração para ter o benefício do 5G. 

O 5G precisa de espectro, e o DSS não é suficiente. O leilão no Brasil foi adiado, e outros países que não haviam realizado o leilão também foram pegos de surpreso com a pandemia, como é o caso da França. Ainda não é tarde demais, mas é importante que isso seja feito o mais rápido possível, porque sem frequência adicional, não se tem o benefício do 5G, principalmente sem as ondas milimétricas, que são importantíssimas. Existe muita tendência em focar a discussão do 5G no usuário de smartphone, e as ondas milimétricas têm vantagens enormes para esse público, mas ela é crucial para os setores industrial e corporativo, com vários usos que são parte da transformação digital de várias empresas e da economia. É o que eu sempre digo a reguladores no mundo inteiro: o 5G precisa de todos os espectros.

OD: O que os usuários do DSS estão “perdendo” em comparação com o 5G definitivo?

CA: O 5G DSS oferece um benefício do parecido com o da banda média. Sem a onda milimétrica você não vê o potencial total do 5G. Para usos avançados, como realidade virtual e presença virtual, que pode ser o próximo passo das redes sociais, é preciso um aumento grande não só de velocidade como de latência. 

Nesse tempo em as pessoas estão em home office, os sistemas de informação estão indo para a nuvem, e são necessárias grandes velocidades de transmissão e baixa latência para permitir o acesso transparente a uma grande quantidade de informações. 

Outro exemplo: em San Diego, fizemos uma demonstração com um notebook da Lenovo com 5G conectado com ondas milimétricas em uma rede da Verizon. Demonstramos a “on-demand computing”, realizando edição de vídeo profissional, que normalmente precisaria de um workstation, só que com um laptop com 5G utilizando a computação na nuvem. Essa extensão do seu computador com o que está na nuvem precisa das ondas milimétricas.

Essas transformações precisam de todos os segmentos do 5G: do DSS, da banda média e da banda milimétrica, que é o que permite a “wireless fiber” (fibra óptica sem fio), que permite essa velocidade.

OD: Como você diz, o 5G é composto por diferentes tipos de frequências. O que cada um deles proporcionará para usuários e empresas?

CA: O 5G é composto por dois sistemas: um prevê a conversão das frequências existentes mais a nova de 3,5 GHz, que é o sub-6 (referência a ondas com menos de 6 GHz de frequência), com velocidades da ordem de até 1 gigabit por segundo e maior confiabilidade; o outro, que são as ondas milimétricas (referência ao menor comprimento de onda, com frequências acima de 24 GHz) tem as frequências mais altas, com velocidades muito maiores por ter maior disponibilidade de espectro. Elas precisam de mais estações rádio-base, mas têm velocidades muito maiores.

Para um usuário de smartphone, com o DSS e a banda de 3,5 GHz, o 5G pode fazer com o vídeo o que o 4G fez com a música, que já é totalmente acessível por streaming. No 4G, atualmente, em apenas uma pequena porcentagem dos casos o vídeo é apresentado em sua taxa máxima de resolução. No 5G, em 95% dos casos esse vídeo será exibido na resolução original, mesmo com baixa cobertura. Ele também vai transformar a produção de conteúdo pelo usuário, com mudanças em vários setores da economia. Vamos imaginar um jogo de futebol: hoje você escolhe em qual emissora ou rádio vai acompanhar à partida. Com o 5G, você poderia escolher qual youtuber prefere acompanhar, porque ele pode estar lá com um telefone e transmitir o jogo ao vivo em 4K.

Com a onda milimétrica no telefone, você pode ver outras coisas, como a transformação total da indústria de jogos. O próximo console será o último console. Há muito mais celulares no mundo do que consoles de videogame, então com o 5G se torna viável o streaming de jogos para os smartphones. O desenvolvedor não precisa ter uma versão do jogo específico para o celular: com a banda milimétrica, será possível rodar qualquer jogo de Xbox e PlayStation em um dispositivo móvel.

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XCloud, serviço de jogos em nuvem da Microsoft, pode se valer do 5G para oferecer jogos de console para qualquer dispositivo conectado

A parte que eu mais gosto é a evolução das redes sociais. Com a banda milimétrica, há banda e latência para aplicações de presença virtual. As videochamadas, que têm se popularizado com o 4G, serão uma coisa realmente normal com o 5G. E há aplicações futuristas: você pode ter óculos conectados com realidade aumentada que usam a inteligência artificial para buscar dados de uma pessoa com buscas em Facebook, Instagram e LinkedIn.

Para as empresas, as aplicações da onda milimétrica são quase infinitas. Com um laptop 5G, é possível realizar qualquer tipo de tarefa em um computador com o “on-demand computing”. Se precisar de mais memória RAM, mais processamento, é só mandar para a nuvem. É um processo quase instantâneo e transparente. Dá para transferir todo o TI de uma empresa para a nuvem.

Na indústria, vamos olhar para o exemplo da manufatura. Você tem vários robôs, cada um com um servidor atrelado a ele e uma programação específica. Com o robô conectado ao 5G, o servidor está na nuvem e a empresa pode conectar várias máquinas com um banco de dados centralizado. Se precisar de um upgrade, não precisa mexer na máquina, basta atualizar o software na nuvem. Outras linhas de montagem dependem de câmeras que tiram fotos e dependem de um técnico no local para fazer o controle de qualidade; com o 5G, é possível fazer esse acompanhamento remotamente em tempo real permitindo vários tipos de diagnóstico. Então a transformação é tão profunda que o 5G será a diferença entre as empresas mais e menos competitivas.

OD: Do ponto de vista técnico, o que é necessário para o 5G DSS?

CA: O celular precisa ser 5G, sem diferença nenhuma entre aparelhos 5G em diferença nenhuma dos aparelhos em operação na China e na Europa na frequência de 3,5 GHz. Ele precisa estar preparado para as novas bandas e nas bandas existentes do 4G. 

Do lado da infraestrutura, há duas empresas com liderança de mercado na tecnologia: Ericsson para as estações rádio-base e Qualcomm nos chips e processadores que vão no celular. Há dois cenários para implementação do 5G DSS: em uma delas você tem equipamentos de 4G modernos que suportam também o 5G e podem separar os usuários; na outra, o DSS é implementado com uma nova estação 5G instalada ao lado do equipamento existente de 4G. O upgrade que está sendo feito para o DSS já um equipamento definitivo de 5G, que pode ser ampliado com mais serviços e frequências.

OD: O Brasil enfrenta uma crise econômica grave, com empresas e pessoas receosas em investir. É o momento ideal para o 5G?

CA: Com certeza. A pandemia é uma situação difícil para o mundo que trouxe um momento de recessão econômica significativo, mas em momentos assim há oportunidades criadas com tendências geradas pela adaptação da sociedade, e algumas delas podem ser positivas e podem permanecer. 

O privilégio de estar no setor de tecnologia e telecomunicações é que ele tem crescido com a pandemia, porque é através da tecnologia que as pessoas têm se conectado e se mantido produtivas. Uma dessas tendências é a transformação da casa em enterprise: o home office está virando office. Então as pessoas estão interessadas em PCs com novas tecnologias, estão usando mais o telefone, então querem um smartphone melhor.

Por incrível que pareça, observamos duas coisas no mercado em escala global. Alguns mercados viram quedas de 10%, 20%, 30%, ao mesmo tempo em que o 5G se manteve constante. Não houve perdas na venda de celulares 5G, e o percentual de aparelhos com 5G vendidos aumentou. As pessoas também começaram a comprar mais celulares de faixa mais alta e tops de linha, então o mix de smartphones vendidos subiu, porque as pessoas buscam um smartphone melhor para poder se conectar e se manter produtivas.

E as empresas estão vendo que precisam se conectar para manter seu negócio. Estamos vendo demanda acelerada de transformação digital. Projetos que não eram prioritários, de conectar ativos e internet das coisas, vieram para frente, porque é mais importante investir nisso do que construir um prédio novo. 

Então dentro do setor de tecnologia temos, há oportunidades de crescimento grande e o momento é de aceleração do 5G, e não o contrário.

OD: Como tem sido a adesão ao 5G no mundo nestes primeiros anos?

CA: O 5G realmente está no começo e aos poucos se ganha escala. Quanto maior a base, mais se atrai o interesse dos desenvolvedores de aplicativos. No meu panorama, o 5G está avançando mais rápido do que esperávamos. Devemos ver uma transição do 4G para o 5G da ordem entre dois e três anos mais rápido do que a migração do 3G para o 4G.

Já temos visto uma evolução em como as operadoras pensam em modelos de negócio. Os pacotes 5G lançados até o momento, com raríssimas exceções, têm dados ilimitados, porque é uma tecnologia que precisa conectar usuários à nuvem em 100% do tempo. E temos visto uma aceleração da transição dos aplicativos para a nuvem tanto no setor do consumo quanto no corporativo, com cada vez mais workloads transferidos para a nuvem.

Uma comparação interessante é a situação da Netflix, que nasceu como um serviço de entrega de DVDs em envelopes pelo correio e, com a banda larga e o 4G, passou a ser streaming. Essa transformação de tudo ir para a nuvem está acelerada.

Em mercados onde o 5G já tem escala, como, por exemplo, a Coreia do Sul, a porcentagem de uso de dados do celular aumentou de forma exponencial, principalmente a geração de conteúdo por usuários proporcionada por uma rede mais confiável.

OD: Existe muita desinformação relacionada ao 5G; que ele causa câncer, que ele é culpado pelo coronavírus… qual é o custo dessa desinformação?

CA: É um absurdo. Uma das coisas que acontecem com o 5G é o aumento das frequências de onda, tanto na banda média quanto nas ondas milimétricas. Você diminui o raio das células (de transmissão de rádio) e aumenta o número de estações, com mais torres. O que isso significa é que você reduz a energia de transmissão, e você não precisa com muita energia porque as torres são menores. Com isso, você vê diminui a energia por bit; o 5G precisa de muito menos energia do que uma estação de TV aberta, por exemplo. A banda milimétrica também já é utilizada para micro-ondas há muito tempo, é só ver a quantidade de antenas de micro-ondas em volta de prédios de empresas telefônicas.

Há organizações bastante competentes, como o FCC nos Estados Unidos (órgão regulador de telecomunicações equivalente à Anatel no Brasil), que fazem as certificações de todos os telefones lançados com 5G, que precisam estar dentro de um limite de radiação determinado pelo FCC. Então isso não faz sentido.

Agora o risco desse tipo de coisa é privar a sociedade de ter uma tecnologia, o que pode acabar causando exclusão econômica, criando uma separação cada vez maior entre os que têm acesso e os que não têm. Um exemplo no setor de educação: com a pandemia, as escolas fecharam no Brasil, na Europa, nos Estados Unidos, mas nos países que têm banda larga, as crianças estão estudando; nos países que não têm banda larga, as crianças não estão estudando.

Você consegue ver de forma muito clara a questão da importância do acesso à tecnologia. É igual a ter ou não acesso a eletricidade, saneamento básico. É uma infraestrutura crítica porque a economia será cada vez mais digitalizada, e se você não tiver acesso às tecnologias, você cria exclusão econômica. Esse é o risco de não ter acesso ao 5G.