Entenda o problema de o seu smartphone vigiar sua localização 24 horas por dia

New York Times obteve acesso a dados de localização de mais de 12 milhões de cidadãos dos EUA ao longo de um ano. E o que viu foi praticamente um "diário" da vida de cada um, minuto a minuto
Rafael Rigues20/12/2019 15h35

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Quando se fala em vigilância da população, a primeira coisa que vem à cabeça da maioria das pessoas são regimes autoritários, como a China ou a Coréia do Norte. Em países democráticos, a população certamente se revoltaria se um governo exigisse que qualquer cidadão com mais de 12 anos carregasse no bolso um aparelho capaz de registrar sua localização 24 horas por dia. Ainda assim, milhões de pessoas fazem isso voluntariamente, de acordo com um artigo publicado no New York Times.

Estamos falando dos smartphones, mais especificamente dos muitos aplicativos instalados neles, capazes de determinar com precisão a localização de um usuário. Coletados em gigantescos arquivos por empresas especializadas como o Foursquare, Teemo, Skyhook, Factual e muitas outras, estes dados podem ser correlacionados a outras fontes de informação publicamente disponíveis para determinar facilmente a identidade de um usuário e rastrear, momento a momento, sua rotina diária. Onde mora, onde trabalha, o caminho que percorre, com quem passa a noite e muito mais.

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Algumas das empresas que coletam e negociam dados de localização de usuários

A equipe do jornal obteve acesso a um destes arquivos, contendo mais de 50 bilhões de “marcadores” deixados pelos smartphones de mais de 12 milhões de cidadãos dos EUA, entre 2016 e 2017, enquanto viviam suas vidas em cidades como Washington, Nova York, San Francisco e Los Angeles.

A coleta destas informações é perfeitamente legal nos EUA, e uma das muitas coisas com as quais os usuários concordam quando clicam em “Eu aceito” na tela que mostra os termos de uso de um novo aplicativo. Estes dados, obtidos em tempo real, são repassados a outras empresas que podem usá-los para fins como a publicidade.

É por isso que, por exemplo, você vê uma propaganda de um carro no seu feed do Facebook segundos depois de passar em frente a uma concessionária. Mas o problema vai muito além de simplesmente “mostrar propagandas”.

Para as empresas, ter uma visão completa da “jornada do consumidor”, desde o momento em que ele vê um anúncio até quando efetua uma compra, é algo valiosíssimo. Saber o que o motiva, ou como ele decide, pode ser crucial para o lançamento ou sucesso de um produto, ou para determinar o potencial de um mercado. Campanhas políticas poderiam usar os dados de participantes de comícios para saber onde eles moram, quais são seus interesses e ajustar um discurso para influenciá-los de forma efetiva.

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Localização de um usuário específico ao longo do tempo, sobreposta ao mapa de Manhattan

Outro exemplo é que se seu smartphone identificar sua ida ao hospital mais vezes do que o usual em um certo período, sua operadora de saúde pode “inesperadamente” avisar que o seu plano vai ser reajustado; ou ainda, promoções de medicamentos em farmácias comecem a pipocar na sua frente. Para alguns, ainda é difícil entender a importância da privacidade de dados e localização, mas as consequências podem ser muito piores do que se imagina.

As empresas dizem que os dados são compartilhados apenas com parceiros pré-selecionados e aprovados, mas não há como fiscalizar isso. E mesmo que as empresas estejam agindo de forma totalmente ética, não há como impedir que estas informações caiam nas mãos de terceiros (como a própria equipe do jornal), ou mesmo de um governo hostil.

“Seguimos oficiais militares com autorizações de segurança enquanto dirigiam a caminho de casa à noite. Rastreamos policiais enquanto deixavam seus filhos na escola. Vimos advogados poderosos e seus convidados em viagens para casas de veraneio”, dizem os jornalistas Stuart A. Thompson e Charlie Warzel, autores do artigo.

“Vimos sinais de casamentos se desfazendo, vício em drogas, visitas a hospitais psiquiátricos”, dizem eles. Em um caso, perceberam que um funcionário da Microsoft quebrou sua rotina e numa tarde visitou um campus da Amazon. Meses depois dele começou a trabalhar na empresa. Foram necessários apenas alguns minutos, segundo os autores, para identificá-lo como Ben Broili, que agora trabalha como gerente na Amazon Air, subsidiária da Amazon no segmento de entregas com drones.

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Os dados são detalhados o suficiente para identificar indivíduos, como Ben Broili. Mapa registrou o dia em que fez uma entrevista de emprego. Crédito: New York Times

“Não posso dizer que estou surpreso”, disse Broili aos jornalistas. “Mas saber que vocês puderam acessar os dados, analisá-los e determinar onde moro e onde trabalho – isso é estranho”. A mesma técnica poderia ser usada para rastrear celebridades. Ou identificar repórteres se encontrando com suas fontes em um local remoto.

“Estamos vivendo no sistema de vigilância mais avançado do planeta”, dizem os jornalistas. “Este sistema não foi criado propositalmente, mas surgiu através da intersecção entre avanços tecnológicos e busca por lucros. Ele foi feito para fazer dinheiro. O maior truque que as empresas de tecnologia já fizeram foi convencer a sociedade a vigiar a si mesma”.

Fonte: New York Times

Colunista

Rafael Rigues é colunista no Olhar Digital