Reconhecimento facial: o que se pode esperar dele?

Trata-se de uma das tecnologias mais inovadoras do momento. Só que é preciso pensá-la melhor
Roseli Andrion23/03/2019 00h39, atualizada em 26/03/2019 11h00

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Uma das novidades do carnaval brasileiro foi além dos sambas-enredo e das marchinhas tocadas nos blocos: o reconhecimento facial ajudou a identificar suspeitos e a polícia prendeu indivíduos que já eram procurados graças a essa tecnologia. As ações aconteceram na Bahia e no Rio de Janeiro.

A Polícia Metropolitana de Londres usa uma ferramenta semelhante. Nos EUA, os departamentos de polícia do Oregon e da Florida devem instalar o reconhecimento facial em câmeras do governo em uma parceria com a Amazon (e seu Rekognition).

Além disso, a tecnologia já ajudou a encontrar um atirador por lá: foi em 2018, no caso do tiroteio no jornal Capital Gazette, de Annapolis, em Maryland. Para chegar a ele, foi usado um banco de dados com fotos do arquivo da polícia e de carteiras de motorista.

A tecnologia não é nova, mas está cada vez mais avançada. O conceito foi desenvolvido na década de 1960 por Woodrow “Woody” Bledsoe para a Panoramic Research e até hoje os preceitos são os mesmos: boa parte dos sistemas ainda aposta em imagens 2D, já que a maioria dos bancos de dados de referência têm apenas esse tipo de foto.

Ela é, portanto, uma forma de autenticação biométrica que permite confirmar uma identidade. O processo de identificação usa as medidas do formato e da estrutura facial, que são únicas para cada indivíduo. Aí começam os problemas: embora seja bastante interessante, ela pode ser controversa.

É essa a tecnologia usada no Facebook para sugerir marcações em fotos — e quem tem irmãos sabe que o sistema pode ser bastante falho na tarefa de diferenciar pessoas com características semelhantes. Isso porque informações-chave das imagens (como o tamanho e o formato de nariz, boca e olhos, bem como a distância entre diferentes pontos da face) são comparadas com um banco de dados. Há até quem tenha processado a rede social por ter sido identificado em imagens sem ser informado.

E tem mais: uma foto de frente mostra uma distância diferente do nariz aos olhos, por exemplo, de uma imagem em que a face está virada de lado. Por isso, quando se somam os ângulos e a iluminação, o reconhecimento facial pode encontrar dificuldades. Isso sem contar que existe o risco de que essa coleta de dados aponte suspeitos que sequer sabem que são investigados.

Casas, shoppings e qualquer outro lugar

Em casas inteligentes, a tecnologia pode ajudar os dispositivos a se tornarem mais independentes e enviarem notificações quando virem um desconhecido, bem como serem capazes de facilitar o acesso a familiares e amigos. Isso sem contar os robôs que já usam o sistema, como o Lovot e o cachorrinho Aibo, da Sony.

Nos shoppings, câmeras com reconhecimento facial podem ajudar a oferecer sugestões personalizadas. E a expansão dos usos não para: a Olimpíada de Tóquio 2020 será a primeira a usar o reconhecimento facial para melhorar a segurança dos participantes.

Alguns smartphones oferecem o recurso. É o caso do iPhone, do Google Pixel 3 e do Samsung Galaxy S9 e S10+. No Android, entretanto, a tecnologia ainda não é suficientemente segura (tanto que não é usada em pagamentos móveis).

Uso sem consentimento

Pior ainda, a ideia pode ser adotada em aeroportos, por exemplo, e usada sem o conhecimento e o consentimento dos frequentadores para tornar os processos mais ágeis (ou não!). E é aí que surgem os questionamentos acerca de privacidade.

Há quem se preocupe, por exemplo, com o uso exagerado para garantir o cumprimento da lei — algo como o que houve durante o nosso carnaval. Outros estão inquietos com a possibilidade de esse tipo de sistema ser usado para aprofundar preconceitos raciais. E a Electronic Frontier Foundation alerta para o fato de que os sistemas atuais de reconhecimento facial geralmente produzem muitos falsos positivos quando têm de identificar minorias.

Esses são apenas alguns dos receios associados ao reconhecimento facial. É preciso lembrar, ainda, que o governo chinês usa a tecnologia para monitorar os cidadãos e, assim, encontrar criminosos e observar o comportamento dos indivíduos — esses dados depois se transformam em um score.

Na China, quem compra muitos videogames ou atravessa a rua com o sinal fechado, por exemplo, recebe pontos negativos. Isso pode afetar seu “crédito social” a ponto de dificultar o acesso a um empréstimo ou financiamento, ou até mesmo impedi-lo de viajar ou navegar na web.

A Ring — empresa de campainhas com vídeo que foi comprada pela Amazon no ano passado — tem patentes para monitorar criminosos sexuais e outros nas listas de procurados e, automaticamente, notificar a polícia. Com as falhas inerentes da tecnologia, ainda é temerário usá-la para esse fim, já que há grandes chances de atingir cidadãos que nem sejam suspeitos.

Leis ainda estão em desenvolvimento

Como se trata de uma tecnologia nova, as leis ainda não foram adaptadas para ela. No Brasil, já foi aprovada a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPDP), que entra em vigor em agosto de 2020. Seu artigo 4º, no entanto, exclui o tratamento de dados para fins de segurança pública.

A preocupação dos especialistas é que os dados não sejam usados apenas para essa finalidade — como o que acontece hoje na China para a definição do crédito social. E a polêmica aumentou com a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) por medida provisória. Isso porque, além de tornar o poder fiscalizatório sobre o tratamento de dados pelo Estado mais flexível, ela permite o compartilhamento de informações públicas com empresas desde que haja supervisão de uma autoridade.

Considerando o histórico recente das empresas — com vazamentos de dados constantes nos mais diversos segmentos —, que deixa clara a dificuldade que elas têm para cuidar das informações dos clientes, isso pode ser bastante perigoso.

O próximo passo: analisar a textura da pele

Enquanto isso, a tecnologia se desenvolve ainda mais. Já existe, por exemplo, a possibilidade de analisar a textura da pele — criada pela Identix, que desenvolve meios seguros de identificação, a ideia é que ela ajude outras aplicações a superarem as dificuldades.

O diferencial dessa tecnologia é que ela trabalha em escala menor: em vez de medir a distância entre o nariz e os olhos, por exemplo, ela avalia o intervalo entre os poros. Teoricamente, a precisão do método é capaz de diferenciar gêmeos.

Há muitas aplicações interessantes para o reconhecimento facial — especialmente as que podem tornar a casa mais segura —, mas a facilidade para que ele agrida a privacidade e os direitos pessoais ainda é muito grande. O debate acerca de suas possibilidades é essencial, uma vez que ele já deixou de ser um conceito de ficção científica e se torna uma realidade cada vez mais próxima.

Colaboração para o Olhar Digital

Roseli Andrion é colaboração para o olhar digital no Olhar Digital