A aplicação de franquias na banda larga fixa é um assunto que costuma gerar discussões acaloradas no Brasil. De um lado, as operadoras e provedores argumentam que a medida é necessária para garantir um uso mais racional da rede e a oferta de planos mais atrativos. De outro, os consumidores temem que essa limitação se torne demasiadamente restritiva e, no fim das contas, seja mais um fardo para o sofrido bolso do brasileiro em tempos de vacas magras.
Embora as franquias já estivessem presentes em contratos de diferentes prestadoras há anos, o assunto só ganhou repercussão em 2016, após a Vivo anunciar que reduziria ou cortaria o acesso de clientes que extrapolassem os limites. Diante da repercussão negativa, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) emitiu uma medida cautelar que proibia a prática para grandes operadoras. Entretanto, o caso voltou a ganhar os holofotes após empresas iniciarem uma nova investida em defesa das franquias.
Entre as empresas e grupos que tomaram a frente das discussões está a Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações (Abrint). Em outubro, a entidade divulgou um documento em parceria com a Associação Brasileira das Empresas de Telecomunicações por Satélites (Abrasat) no qual defende a manutenção da oferta de planos com franquias no Brasil. Em entrevista ao Olhar Digital, o presidente da Abrint, Basílio Perez, afirmou que o grupo busca a “liberdade de negócio”.
“A nossa preocupação não é liberar ou não a franquia. A nossa preocupação é não proibi-la. Hoje em dia, a franquia é necessária. Ela protege contra gargalos na internet”, disse. A utilização dos limites, segundo o presidente da Abrint, permitiria que os prestadores de serviços tivessem maior previsibilidade ao montar o seu negócio. Sem ela, o executivo acredita que todos os links dos clientes se tornariam um serviço cheio, no qual o cliente consumiria toda a largura da banda de forma constante e, por consequência, aumentaria os riscos de congestionamento nas redes.
O serviço cheio ao qual o presidente da Abrint se refere são links dedicados, normalmente ofertados a pequenos provedores e a empresas. Nesses planos, a internet possui uma taxa de download e upload fixa e constante na velocidade contratada pelo cliente. Nos planos domésticos, por outro lado, a operadora não precisa entregar a taxa assinada durante todo o tempo, devendo apenas cumprir a exigência de 80% de velocidade média mensal e 40% de taxa instantânea em uma bateria de testes constantes.
Atualmente, a medida cautelar da Anatel vale apenas para as prestadoras com mais de 50 mil habitantes, liberando as empresas de pequeno porte para incluir franquias em contratos. No entanto, o projeto de lei 174/2016 do Senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES) propõe vetar completamente essa possibilidade. A proposta está parada desde março de 2017 na Câmara Federal.
As entidades ligadas ao setor de telecomunicações, como era de se esperar, se opõem ao projeto do Senado Federal. A justificativa é que a proibição do modelo de franquias vetaria a liberdade de negócio entre os provedores e seus clientes. Além disso, a obrigatoriedade da franquia ilimitada impediria o surgimento de planos mais atrativos, especialmente para a população mais pobre.
“Se uma empresa quer fazer um serviço de 100 Mbps com uma franquia X e, por causa disso, consegue a metade do preço, a outra pode oferecer 10 Mbps sem franquia. Esse é o modelo de negócio”, defende Basílio Perez. Durante a conversa com o Olhar Digital, o presidente da Abrint insistiu na redução de preços que a limitação poderia ter. Perguntado por uma estimativa, porém, disse que não seria possível fazê-lo.
Um dos principais receios dos consumidores em relação à liberação de franquias na banda larga fixa é de que a redução no valor do serviço não compense a mudança ou sequer vire realidade. Um relatório recente divulgado pela Anatel mostrou que o valor médio cobrado por cada megabit por segundo subiu 20% entre 2016 e 2017, apesar de a inflação no período ter sido de apenas 2,95%. Além disso, o brasileiro acabou de se ver diante de outra promessa jamais concretizada em outro setor: a redução no preço das passagens aéreas com a liberação da cobrança de bagagens.
Além dos argumentos econômicos, as operadoras batem ainda na tecla do comportamento do consumidor. No documento publicado pela Abrint e a Abrasat, as entidades defendem que o modelo de internet sem franquias incentivaria a “superexploração e comportamento não consciente” por parte do consumidor. Questionado por um exemplo destas atitudes abusivas do consumidor, Basílio Perez citou a sua empresa, que atende comunidades pobres com fibra óptica.
“As pessoas acabam compartilhando entre si e os vizinhos. Então, a gente sabe, por experiência própria, que cada conexão vendida em um bairro pobre acaba sendo usada por duas ou três famílias diferentes, simultaneamente. Se não tiver franquia, cada conexão dessa vai ser usada por um quarteirão inteiro, não por duas ou três casas”, disse o presidente da Abrint, que alega que a atuação em regiões de baixo poder aquisitivo se tornaria inviável se a proibição fosse aprovada.
Embora não seja crime, o compartilhamento de internet pode render multas aplicadas pela Anatel de até R$ 10 mil. Além disso, é vetada a possibilidade que alguém cobre mensalidades pelo serviço da internet, sem que esteja regularizado como prestador de serviço e sem atender os requisitos exigidos por lei. Para que haja a punição, porém, é necessário uma denúncia de uma das partes envolvidas e uma visita dos técnicos da agência.
Contra a limitação da franquia
Primeiro brasileiro a entrar no Hall da Fama da Internet e representante do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI) pelo notório saber, Demi Getschko acredita que a franquia ilimitada é o melhor modelo para a banda larga no país. O especialista destaca que as conexões domésticas foram construídas sobre este formato e que introduzir mais uma preocupação à cabeça do consumidor, além da velocidade adequada para as suas necessidades, seria prejudicial.
O especialista destaca ainda que as operadoras não estão dando o peso devido aos avanços tecnológicos ocorridos nos últimos anos. Segundo Getschko, uma maior largura de banda atualmente nem sempre gera os custos proporcionais aos dados baixados. Isso acontece porque o conteúdo de grandes empresas como a Netflix, por exemplo, está sendo trazido para mais perto do consumidor brasileiro, evitando que o provedor tenha que contratar uma grande largura para ir buscar fora do país.
Uma comparação feita normalmente pelas operadoras de banda larga fixa é o uso da franquia na rede móvel. No documento divulgado pela Abrint e Abrasat, as entidades afirmam que a implementação de limites nos planos de celular foi benéfica para o consumidor e fez com que os preços do megabyte caíssem. Para Basílio Perez, a resistência ao modelo na internet fixa seria por falta de costume do consumidor e pela não entendimento de que a internet seria “uma só” e a franquia faz parte do desenho do produto.
Já Demi Getschko acredita que esta comparação não deve ignorar as especificações de cada tipo de conexão. Para o especialista, o modelo de franquia funciona bem na rede móvel por se tratar de uma tecnologia onde há mais imprevisibilidade e com velocidade que varia de acordo com a área de cobertura, concentração de usuários em uma mesma localidade e sobrecarga das células das antenas. Enquanto isso, a banda larga fixa ofereceria uma maior noção do que será conectado em uma casa ou escritório onde será instalada.
Ainda sobre essa previsibilidade, Demi Getschko crê que isso derruba o argumento das operadoras sobre dificuldades técnicas para oferecer uma largura de banda constante. Segundo o especialista, as empresas dispõem de cálculos com precisão suficiente para montar a sua rede, inclusive considerando eventuais abusos por parte dos consumidores.
“É como um cara que aluga carros por diárias. Um cliente pode ir de São Paulo ao Rio de Janeiro e voltar em um dia, enquanto o outro pode ficar só dando volta na cidade. O modelo de negócio tem que prever isso. Alguém vai lucrar e alguém vai perder, mas em uma média tudo vai funcionar”, afirma. Para o especialista, um grande problema seria empresas que prometem velocidades que sabem que não são capazes de cumprir, somente para aumentar a sua base de cliente.
Enquanto a discussão segue sem consenso no Brasil, poucos países no mundo liberaram a oferta de planos com franquia. Apenas Estados Unidos e Canadá permitem a venda de banda larga limitada, embora com pacotes bem mais generosos do que os anunciados pela Vivo em 2016, enquanto a Alemanha libera a redução de velocidade. No restante da Europa, América Latina e Ásia, os assinantes não precisam se preocupar com a quantidade de dados baixados.
Quanto à possibilidade de a franquia na banda larga fixa atrapalhar o desenvolvimento tecnológico do Brasil, as duas partes se dividem. Para Basílio Perez, a liberação vai apenas “manter a internet como sempre foi”, com possibilidade de expansão e melhores velocidades. Já Demi Getschko é mais cauteloso e alerta que isso pode acontecer, dependendo do valor que for estabelecido e das consequências para os consumidores que estourassem seus pacotes.
– Com a palavra, a Anatel
Procurada pelo Olhar Digital, a Agência Nacional de Telecomunicações encaminhou uma nota à reportagem. A Anatel destaca que, em março, o Conselho Diretor decidiu prorrogar por 180 dias o prazo para que as entidades enviem manifestações sobre a questão. Em seguida, um grupo composto por três superintendências avaliará o material coletado e fará uma Análise de Impacto Regulatório do tema. Por fim, será aberta uma Consulta Pública.
A Anatel também negou que estaria sofrendo pressões por parte das operadoras para aprovar a franquia da Internet fixa. Além disso, a agência ressaltou que a medida cautelar que proíbe prestadoras com mais de 50 mil assinantes a praticar redução de velocidade, suspensão de serviço ou cobrança por tráfego excedente após esgotamento de franquia continua em vigor por prazo indeterminado. A decisão vale mesmo para o caso em que estas ações constem no contrato ou plano de serviço da operadora.