Sim, é preciso proteger as crianças da tecnologia antes que seja tarde

Os pequenos têm contato com dispositivos eletrônicos desde muito cedo e isso pode prejudicar seu desenvolvimento; alguns países já criam leis para prevenir danos
Roseli Andrion08/08/2019 00h49, atualizada em 08/08/2019 14h00

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Imagine que houvesse uma lei que obrigasse aplicativos viciantes a limitarem o tempo de uso das crianças em 40 minutos. Você estaria preparado para cumpri-la? Seria capaz de impor essa regra a seus filhos? Conseguiria acalmá-los mesmo sem usar o artifício tecnológico?

Na China, essa regulamentação existe desde junho. O que motivou a Administração do Ciberespaço Chinesa a desenvolvê-la foram os aplicativos de vídeos curtos, como o TikTok — essa ferramenta, sozinha, tem cerca de 650 milhões de clientes no país asiático.

Para garantir o crescimento saudável das crianças, a norma chinesa propõe que esses apps ofereçam um ‘modo jovem’: ele deve ser ativado diariamente, quando for aberto, para limitar os recursos disponíveis para os pequenos usuários. Além disso, quando a opção estiver ativa, os aplicativos não poderão ser usados entre as 22h e as 6h (que é quando se dorme).

O governo chinês espera que isso evite que os pequenos — e até os adolescentes — fiquem viciados nessas plataformas. A preocupação faz sentido: não é raro ver crianças, especialmente as menores, ficarem nervosas quando o dispositivo dado para tranquilizá-las é retirado delas. É como se o remédio fizesse mais mal que a doença.

Por isso, as empresas devem ter responsabilidade pelo conteúdo que oferecem e pela integridade da internet como um todo. O órgão chinês não detalhou as características do filtro que deve ser criado pelas empresas, mas algumas das afetadas pela medida, como a Douyin e a Kuaishou, dizem que ele será ativado automaticamente para menores de idade.

Segundo o advogado Gustavo Artese, especialista em Direito da Tecnologia da Informação e das Comunicações do Viseu Advogados, identificar o usuário — e, assim, saber quantos anos ele tem — é um grande desafio. “Uma das soluções pode ser cobrar US$ 0,01 para comprovar que se trata de um adulto. Não é o ideal, mas é melhor do que uma declaração simples.”

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Equilíbrio é essencial

A geração alfa, nascida a partir de 2000, já está quase chegando aos dez anos de idade. Eles são os primeiros para quem o universo analógico é completamente desconhecido. O uso da tecnologia é tão natural em seu contato com o mundo que ninguém precisa ensiná-los: eles aprendem intuitivamente, pois é como se tivessem nascido com o touch nas pontas dos dedos.

Isso traz preocupações para pais e especialistas — muitos acreditam que é preciso evitar que esses equipamentos sejam usados excessivamente. Luiza Mendonça, psicoterapeuta, educadora parental e CEO do AppGuardian, diz que, para usar a tecnologia de forma saudável, é preciso equilíbrio.

Segundo ela, não se pode proibir seu uso, mas é essencial não ser permissivo demais. “Se pensarmos no YouTube, por exemplo, é importante assistir junto e conversar sobre o assunto”, reforça. “Essa cultura deve ser incentivada em casa. Assim, os pais se mantêm conectados à realidade das crianças e podem orientá-las sobre a segurança nesse ambiente.”

Laura Granado, professora de psicologia da São Judas, concorda e diz que a tecnologia deve ser usada construtivamente para não trazer problemas. “Os pais precisam supervisionar e orientar os filhos”, explica. “Em vez de assistir a youtubers, a criança pode ler. Ali, ela vai imaginar, construir cenários e agir de forma ativa, em vez de receber tudo passivamente.”

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Não só na China

Além da China, outros países já discutem como prevenir que os pequenos sejam afetados negativamente pela tecnologia. Na Índia, por exemplo, o TikTok foi proibido por um período, enquanto nos EUA o senador republicano Josh Hawley criou um projeto de lei que obriga as redes sociais a limitarem o tempo de uso de suas plataformas em 30 minutos.

As chinesas Douyin e Kuaishou prometem, além de criar o filtro exigido pela Administração do Ciberespaço Chinesa, monitorar o material divulgado em seus aplicativos para eliminar conteúdo adulto ou inapropriado. Outros concorrentes, entretanto, ainda não se manifestaram sobre o tema.

No Brasil, por enquanto, não existem leis nem projetos nesse sentido. “Estamos em um momento de observação”, diz Maria Bartira Muniz de Oliveira, coordenadora do curso de Direito da São Judas. “Nossa sociedade é bastante liberal nesse aspecto e o governo, em geral, evita intervir nas liberdades individuais.”

Segundo ela, aqui é comum que o poder público só interfira quando danos são efetivamente provados. Um exemplo é a lei que obriga o uso do cinto de segurança. Há 21 anos, quando o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) foi sancionado, ele não era exigido. A regulamentação só veio quando houve a constatação de que não usá-lo poderia causar mortes ou sequelas.

Com a tecnologia, o processo deve ser semelhante. Um dos primeiros passos nesse sentido é a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPDP). “Existe um artigo específico que prevê a proteção da criança (contra danos à honra e às integridades sexual e física). De acordo com ele, é necessária autorização dos pais para o uso de informações dos pequenos.”

Artese diz que o assunto já é de interesse de entidades da sociedade civil brasileira. “É provável que, com o tempo, o assunto se autorregule. Isso porque há interesse comercial das próprias empresas de oferecer essa opção aos pais”, avalia. Segundo ele, cada vez mais, as companhias têm inserido controle parental em seus produtos, em vez de usar ferramentas de terceiros. “Assim, elas têm um sistema muito mais preciso.”

Ele acredita que o projeto de lei do senador Hawley pode inspirar resoluções semelhantes em outros países. “Essas plataformas surgiram muito rapidamente, estão muito presentes no dia a dia e, por muito tempo, foram pouco reguladas. Pode-se dizer que a internet chegou à maioridade e, agora, está sujeita às leis. E as próprias empresas têm demonstrado interesse em se responsabilizar nesses casos.”

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Futuro ainda é incerto

Apesar do cenário cada vez mais sofisticado, muitas escolas do Vale do Silício — uma das regiões mais tecnológicas do planeta, na Califórnia (EUA) — restringem o uso de dispositivos eletrônicos em suas atividades educacionais. Por lá, é mais comum a pedagogia da experimentação com ênfase na criatividade, na curiosidade e em outras habilidades inatas.

Para eles, inovação é ensinar novas formas de pensar: a tomada de decisões, a criatividade e a capacidade de concentração são mais importantes do que saber usar um dispositivo ou um software específicos. Como a tecnologia fica obsoleta rapidamente, é mais estratégico adotar metodologias inovadoras do que investir em infraestrutura tecnológica.

Os pais têm um papel bastante importante nesse contexto e, em conjunto com a escola, devem ser corresponsáveis por assegurar o uso correto das ferramentas. “Conhecer o universo das crianças é um desafio, porque, em geral, os pais não visitam a mesma tela que elas”, diz Luiza. “As redes sociais só mostram o que cada um gosta. Ou seja, a bolha dos meus filhos é diferente da minha.”

Um levantamento do AppGuardian mostra quanto tempo os pequenos passam nesse universo. As descobertas podem servir de alerta. Crianças entre 5 e 15 anos ficam, em média, 25 horas por mês no YouTube. Além disso, gastam 5,7 horas por dia no celular de segunda a quinta-feiras e, no fim de semana, 6,9 horas diárias no aparelho.

A depender da idade, as crianças podem ficar confusas sobre seus relacionamentos. “Como veem familiares em aplicativos de comunicação e depois os encontram pessoalmente, acreditam que podem encontrar e brincar com os youtubers que seguem. Afinal, sentem-se amigas deles.”

A pesquisa mostra, ainda, que jogos e redes sociais consomem mais de 50% do tempo dos pequenos. Entram aí o WhatsApp, o Free Fire (um jogo de tiro e sobrevivência) e as redes sociais Instagram e Facebook. Segundo dados do estudo, 35% do tempo desses usuários é gasto em jogos, 30% nas redes sociais, 20% em apps de entretenimento, 10% em aplicativos de mensagens e 4% navegando na internet.

Laura, por sua vez, aponta as vantagens que a tecnologia oferece aos pequenos e seu contraponto: o fato de elas limitarem o contato com experiências reais. “Existem ferramentas que contribuem para o desenvolvimento, mas hoje a brincadeira da criança é muito mais a própria tecnologia”, diz. “Por isso, é preciso observar a intensidade de uso dos dispositivos.”

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Brincadeiras são essenciais

Para Luiza, a internet é a rua digital das crianças criadas em condomínios. “Os pais veem o filho em casa, feliz e seguro, mas não se questionam se ele realmente está bem. O que ele consume, do que ri e que opiniões está formando, por exemplo?” É preciso, então, abordá-los de forma aberta e receptiva. “Assim, a criança vai mostrar aos pais aqueles conteúdos que não passariam por eles naturalmente e eles poderão entender esse mundo à parte.”

Segundo Laura, o fato de eles não brincarem de pega-pega e esconde-esconde nem pularem amarelinha, entre outros, pode afetar o progresso psicomotor e até a criatividade. “Essas atividades estão diretamente relacionadas com o desenvolvimento emocional e a habilidade de lidar com diferentes aspectos da vida, como a frustração.”

É mais difícil aprender a lidar com esse sentimento quando a tecnologia está presente, porque, com ela, tem-se satisfação com um clique. “Em um jogo, quando o usuário ganha pontos, ocorre uma liberação tão intensa de dopamina — neurotransmissor que atua na sensação de bem-estar — que é difícil obter de outra forma”, conta.

Embora o uso da tecnologia seja uma necessidade no mundo atual, as habilidades de sonhar, desejar e até mesmo pedir algo devem ser estimuladas nas crianças. “É no intervalo entre o desejo e a possibilidade de satisfação que surgem a criatividade e a habilidade de representar — ou seja, de tornar presente algo que está ausente”, defende Laura.

Segundo ela, a falta de desenvolvimento das capacidades sociais — que ocorre quando os pequenos não se dedicam suficientemente às atividades da vida real — está associada à agressividade. Então, mesmo que ainda não haja uma lei específica para essas situações por aqui, vale a pena garantir que esse equilíbrio esteja presente na vida dos pequenos. Que tal aproveitar que domingo é Dia dos Pais para se desconectar dos eletrônicos e estabelecer um contato mais íntimo com seus filhos?

Colaboração para o Olhar Digital

Roseli Andrion é colaboração para o olhar digital no Olhar Digital