Em 15 de março de 2018, Bruna Ribeiro (seu nome foi alterado para preservar sua identidade), uma estudante de arquitetura de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, chegou à capital para visitar uma feira de Arquitetura e Interiores. Às 18h30, foi para a frente do Transamérica Expo Center, em Santo Amaro, e pediu um carro pelo aplicativo da Uber.

Bruna ia para a casa de familiares na cidade, no Pacaembu, para ficar por três dias. Vinte minutos depois do pedido, o carro chegou. E aí começou uma viagem recheada de assédio e ameaças que obrigaram a estudante a fazer terapia para se tratar de transtorno pós-traumático.

A princípio, o motorista tratou Bruna normalmente. Logo no começo da viagem, entretanto, ele comentou que a passageira era muito “novinha”, perguntou qual era sua cidade natal, se ela tinha vindo à capital a trabalho e se estava em São Paulo sozinha. Na época, a estudante tinha 22 anos.

A jovem respondeu às perguntas de forma direta na tentativa de encerrar o questionário. Minutos depois, o motorista olhou para ela e falou em tom malicioso: “você sabia que aqui há uma onda de ‘ubers’ que estupram meninas dentro do carro? Na sua cidade tem isso também?”. Bruna não conseguiu responder: ela só tremia de medo.

O trajeto até o destino, que deveria demorar 28 minutos, levou mais de 4 horas. Nesse período, houve agressão psicológica, ameaça com uma faca, alta velocidade (o dobro do permitido para a via) e parada indesejada em um local desconhecido.

Para eles, praticidade; para elas, insegurança

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Nesse dia, Bruna entrou para as estatísticas de mulheres vítimas de violência em caronas por aplicativo. Uma pesquisa recente dos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva revelou que 97% das brasileiras com mais de 18 anos já passaram por alguma situação de agressão, física ou moral, em transporte público, por aplicativo ou em táxis.

O resultado teve como base as respostas de 1.081 mulheres que utilizaram esses meios de transporte nos três meses anteriores a fevereiro deste ano, data de início do estudo. As situações de assédio indicadas nas perguntas foram definidas a partir das principais queixas das mulheres.

Entre as entrevistadas, 10% já passaram por olhares insistentes em viagens por aplicativo, 9% por cantadas indesejadas e 4% por comentários de cunho sexual. Elas também relataram (2%) ter recebido mensagens inoportunas de motoristas, antes ou depois das corridas.

E não para por aí: 2% das mulheres ouvidas (21) relataram que o motorista as tocou sem consentimento e fez gestos obscenos, 1% (10 delas) presenciou o piloto mostrando as partes íntimas e foi beijada à força e o mesmo número foi vítima de estupro pelo condutor.

Dados das secretarias estaduais de segurança pública mostram que, entre janeiro de 2016 e julho de 2018, ocorreram 46 estupros (36 estupros e 10 estupros de vulnerável) em corridas por aplicativo e táxis. As informações são relativas a localidades na Bahia, no Mato Grosso, no Mato Grosso do Sul, em Pernambuco, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Os números foram obtidos pelo The Intercept e têm como base dados de denúncias de crimes e delitos sexuais em transportes por aplicativo. A reportagem do Olhar Digital conseguiu os dados por meio da Lei de Acesso à Informação.

Os relatórios aos quais o The Intercept teve acesso revelam, ainda, que pelo menos 70 pessoas foram vítimas de algum tipo de violência sexual em táxis e carros de transporte particular entre 2016 e 2018. Entre as ocorrências incluem-se assédio sexual, gesto obsceno, estupro, importunação ofensiva ao pudor e violação sexual mediante fraude.

Denunciar é essencial

No caso de Bruna, o motorista não fez gestos obscenos nem tentou tocá-la, mas não se limitou aos comentários inapropriados. Durante o trajeto, ele parou de seguir o caminho proposto pelo GPS e chegou a 80 km/h em uma via cujo limite de velocidade era 40 km/h.

Isso a fez sentir-se ainda mais insegura. “Eu avisei que ele podia levar uma multa, mas ele ignorou e disse ‘não tem problema, eu quero aventura'”, conta ela. Sem conhecer São Paulo, com pouca bateria no celular e com seus pertences no porta-malas no carro, Bruna ficou desesperada. Para se proteger, enviou a localização do carro por mensagem aos pais, para que acompanhassem o percurso.

Na pior parte da corrida, o condutor contou para a jovem que, por não saber se quem entra no carro “é bandido”, carregava uma faca. Enquanto falava isso, mostrou o objeto a ela — “era uma faca enorme, tipo de cortar carne em açougue”, lembra Bruna. “Isso para mim foi o fim. Coloquei no rosto uma jaqueta jeans que estava segurando e comecei a chorar [sem ele perceber]”, diz a vítima, que naquele momento estava em pânico.

Já perto das 21h, a jovem avistou um shopping conhecido e falou que o destino podia ser ali mesmo. O motorista negou-se a deixá-la no local e disse que a levaria até o destino combinado. Em seguida, ele parou o carro na loja de um suposto amigo, sem que a passageira pedisse ou autorizasse.

Como sentia-se mal, Bruna foi ao banheiro. O condutor esperou por ela para continuar a viagem — que prosseguiu em alta velocidade enquanto ele reclamava do trânsito. “Algumas pessoas me perguntam ‘Nossa, por que você não desceu do carro?’, ‘Por que não pediu socorro?’, mas na hora eu não conseguia pensar em nada disso, fora que eu não tinha ideia de onde estava”, reflete.

Só por volta das 22h40 a jovem chegou ao destino. “Ficou com medo?”, perguntou o motorista, rindo, enquanto ela pegava as malas. Além de todo o pesadelo que viveu, teve que pagar R$ 220 pela viagem. De acordo com a estimativa inicial do app da Uber, a corrida custaria R$ 54.

Para a especialista em direito virtual Cristina Sleiman, nesse caso, a empresa deve se responsabilizar pela conduta do motorista. “Por ter um vínculo em que você contrata a empresa pela confiança que tem na marca, entendo que ela deve tomar alguma providência. Ela é responsável pelo cadastro [do motorista]”, observa.

A advogada diz que, em situações como essa, a vítima deve fazer uma notificação formal à companhia — por e-mail, por exemplo. Foi o que Bruna fez, além de denunciar o acontecimento pelo próprio aplicativo. “A Uber me respondeu, disse que sentia muito pelo ocorrido e que iria investigar. Além disso, me devolveu o dinheiro excedido. Só que ficou por isso mesmo”, diz a jovem, que não foi informada sobre o desfecho do caso, nem se o motorista foi de fato punido.

Em casos graves e quando a empresa não toma providências, também é recomendável fazer um boletim de ocorrência perante as autoridades locais.

Alternativas para o segmento

No Brasil, algumas empresas de mobilidade por aplicativo trabalham exclusivamente para o público feminino. A proposta é oferecer alternativas que façam as mulheres se sentirem mais seguras nos meios de transporte, público ou privado. Uma dessas iniciativas é a Venuxx, que conecta motoristas mulheres a passageiras.

Segundo Gabrielle Jaquier, chefe de operações (COO) da plataforma, a frequência dos casos de assédio — ou outras situações inadequadas — mostra que a atenção das companhias a esse problema ainda é insuficiente. “Não adianta só dizer para a passageira ‘olhe a placa do carro’ ou ‘verifique a avaliação’ porque a partir do momento que ela está dentro do veículo, sozinha, independentemente de qualquer filtro que a plataforma possa fazer, ela [a mulher] estará vulnerável”, opina.

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A Venuxx se lançou como alternativa de transporte para tentar “maximizar a segurança da mulher”. Por ser um serviço exclusivo para elas, motoristas e passageiras nunca relataram qualquer tipo de assédio durante as corridas. “Elas vêm para a Venuxx para minimizar os riscos existentes nas concorrentes”, afirma Gabrielle. A empresa tem mais de 6 mil motoristas registradas e atua em São Paulo, Belo Horizonte (MG) e Porto Alegre (RS).

Também pensando na segurança, a empresa investe na capacitação rigorosa das motoristas. Durante o processo de aprovação das pilotas, a Venuxx se concentra em treiná-las para melhorar suas práticas com as passageiras, bem como orienta ambas as partes sobre como se comportar em situações de violência contra a mulher e se proteger de possíveis riscos.

As orientações de segurança da plataforma às passageiras incluem: esperar pelo carro solicitado em um ambiente claro, não ficar muito tempo com o celular na mão, deixar o vidro um pouco aberto e colocar o destino no GPS para ter uma previsibilidade do trajeto. Além disso, a companhia oferece dicas de como entrar no veículo. 

Como as empresas lidam com o tema

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As empresas afirmam que repudiam qualquer tipo de violência contra a mulher, estão conscientes do problema e assumem práticas para melhorar a segurança das viajantes nas corridas. A equipe de proteção dos passageiros da 99, por exemplo, tem um canal exclusivo (0800-888-8999) que oferece auxílio imediato e em tempo real.

Em nota, a 99 diz que, em casos de processos judiciais, colabora com as autoridades na apuração da conduta do motorista acusado. A companhia garante que, “após a denúncia, o motorista é bloqueado de maneira preventiva para que a 99 possa colaborar com a investigação da polícia”.

A empresa informa que seus setores de inteligência e monitoramento atuam de maneira preventiva. O aplicativo usa uma tecnologia, baseada em inteligência artificial (IA), de rastreamento de comentários: o sistema “lê” as avaliações dos usuários e consegue identificar sinais (palavras e contextos) de possíveis casos de assédio — ou outras agressões contra a passageira.

A IA é usada, ainda, para observar o perfil das chamadas. Tudo isso é aliado ao botão de emergência e ao acompanhamento da corrida por meio de câmeras instaladas nos veículos (segundo a empresa, elas são “conectadas diretamente com a central de monitoramento da companhia”).

A Uber segue o mesmo padrão. A empresa diz que usa um sistema de rastreamento das avaliações dos usuários, a partir do qual analisa a conduta do motorista e pode bani-lo, caso ele viole os “termos e condições de uso ou o código de conduta da comunidade”. Como exemplo de situação, a companhia aponta o “comportamento inapropriado ou perigoso”.

Além disso, a Uber usa um recurso de detecção automática de linguagem imprópria no bate-papo do aplicativo. “Palavras consideradas ofensivas ou que ameacem a integridade de uma pessoa entram automaticamente em um processo de desativação permanente da conta original”, informa a empresa, em comunicado.

Do mesmo modo que a 99, a Uber diz cooperar com as autoridades na investigação de denúncias de crimes contra a mulher. Para isso, “compartilha informações sobre motorista parceiro e usuário, seus históricos e qual o trajeto realizado”. A plataforma guarda essas informações porque todas as viagens são registradas por GPS. Outra medida de segurança do aplicativo é o compartilhamento da localização do trajeto e da previsão de chegada em tempo real.

Os processos de segurança são semelhantes na Cabify. A ferramenta tem função de compartilhamento de trajeto, botão “SOS” (que permite entrar em contato direto com as autoridades policiais locais) e canal telefônico aberto para os motoristas parceiros, disponível 24h todos os dias. A Cabify garante, ainda, que faz um “rigoroso” processo de cadastramento de motoristas. A empresa verifica documentos, como a certidão de antecedentes criminais, e exige a realização de exame toxicológico.

Esta é a primeira de uma série de reportagens do Olhar Digital para mostrar que a violência contra a mulher é sistêmica no ambiente virtual. Crimes como assédio, perseguição (stalking), ameaças, chantagem e vazamento de fotos íntimas fazem parte do lado sombrio das redes para elas. Acompanhe aqui mesmo no site os próximos episódios sobre o assunto amanhã e sexta-feira (25 e 26). Não perca!

* Editado por Roseli Andrion.