Existem cerca de 500 aminoácidos registrados, mas apenas 20 deles estão presentes no código genético – a glicina é um deles. Essa molécula orgânica, um dos componentes das proteínas dos seres vivos, já foi encontrada em meteoritos e até em Vênus. Agora, uma equipe internacional de cientistas mostrou que a glicina, pode se formar em densas nuvens interestelares, muito antes de se transformarem em novas estrelas e planetas.

Até recentemente, pensava-se que a formação de glicina exigia energia, na forma de radiação ultravioleta, o que limitaria as condições de ambiente nos quais ela pode ser formada. Mas no estudo publicado na Nature Astronomy, astrofísicos e astroquímicos mostraram que é possível a glicina se formar na superfície de grãos de poeira gelada, portanto sem energia, através de um processo chamado de “química escura”.

“A química escura se refere à química sem a necessidade de radiação energética. No laboratório, fomos capazes de simular as condições em nuvens interestelares escuras onde partículas de poeira fria são cobertas por finas camadas de gelo e subsequentemente processados ​​pelo impacto de átomos, causando a fragmentação de espécies precursoras e a recombinação de intermediários reativos”, explica o principal autor do artigo, Sergio Ioppolo. 

ESA/Rosetta/NAVCAM

Mosaico do cometa 67P/Churyumov–Gerasimenko, criado a partir de imagens obtidas em setembro de 2014, quando a sonda espacial Rosetta, da ESA, se encontrava a 27,8 km de distância do cometa. Imagem: ESA/Rosetta/NAVCAM

Os cometas são o material mais puro do Sistema Solar, e refletem a composição molecular presente na época em que nosso Sol e os planetas estavam prestes a se formar. A metilamina, um composto orgânico precursor da glicina, foi detectada no cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko, o que já sugeria que essas moléculas podem se formar antes das estrelas.

Usando uma configuração única de alto vácuo, equipada com uma série de linhas de feixe atômico e ferramentas de diagnóstico precisas, os pesquisadores puderam confirmar que a glicina também poderia ser formada nas mesmas condições, e que a presença de gelo de água era essencial neste processo. “A partir disso, descobrimos que quantidades baixas, mas substanciais de glicina podem ser formadas no espaço com o tempo”, afirma Herma Cuppen, da Radboud University, responsável por alguns dos estudos de modelagem do artigo.

“A conclusão importante deste trabalho é que as moléculas consideradas blocos de construção da vida já se formam em um estágio bem anterior ao início da formação de estrelas e planetas”, avalia Harold Linnartz, diretor do Laboratório de Astrofísica do Observatório de Leiden, na Holanda. “Essa formação precoce de glicina implica que este aminoácido pode ser preservado no gelo que compõem o material a partir do qual, em última análise, os planetas são feitos”, completa.

Os cientistas ainda acreditam que uma vez formada, a glicina também pode se tornar um precursor de outras moléculas orgânicas complexas. “Seguindo o mesmo mecanismo, em princípio, outros grupos funcionais podem ser adicionados ao esqueleto da glicina, resultando na formação de outros aminoácidos, como a alanina e a serina em regiões escuras do espaço. No final, esse rico inventário molecular orgânico é incluso em corpos celestes, como cometas, e entregues a planetas jovens, como aconteceu com nossa Terra e muitos outros planetas”, acredita Ioppolo.