Hemolacria: a condição médica que faz com que pessoas chorem sangue

Embora estranho e raro, o fenômeno tem vários registros na literatura médica - e diversas causas associadas
Renato Mota19/06/2020 20h52, atualizada em 20/06/2020 16h00

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Na Índia, uma garota de 11 anos e seus pais estão apavorados. Há semanas, por duas a três vezes por dia, a criança chora sangue. O fenômeno não é causado por dor ou qualquer emoção intensa, mas as manchas vermelhas que se formam nas bochechas da jovem chocam a família inteira.

O caso, que acontece na cidade de Nova Déli, foi relatado na última edição do BMJ, uma das mais influentes e conceituadas publicações sobre medicina no mundo. “Estou com medo pela saúde da minha filha”, diz a mãe na publicação. “O sangue que sai dos olhos dela é horrível”. Em outros tempos, o fenômeno teria alguma atribuição sobrenatural – e dependendo da cultura local, a menina poderia ser santificada ou amaldiçoada.

Mas esta condição, embora estranha e rara, é conhecida na literatura médica. A hemolacria tem vários registros ao longo da história – assim como diversas causas prováveis. No caso da garota indiana, um diagnóstico ainda está sendo buscado. A paciente não tem histórico de trauma ou doença, e suas glândulas lacrimais parecem intactas. Exames de sangue também estão normais, tanto para amostras coletadas tradicionalmente quanto para o líquido que sai dos seus olhos.

Em 2018, um norte-americano de 52 anos foi até o pronto-socorro local com lágrimas sangrentas e indolores dos dois olhos. Esse caso está relatado em um estudo publicado no New England Jornal of Medicine. O sangramento começou espontaneamente cerca de duas horas antes e durou alguns minutos, mas retornou pouco antes dele ir até o hospital.

Assim como a menina da Índia, o homem não relatou nenhum trauma orbital, ocular ou nasal e nenhuma história hemolacria, epistaxe, sangramento gengival ou hematomas faciais. Embora tomasse um medicamento para hipertensão, sua pressão arterial era normal no momento do exame.

Um exame clínico mais detalhado revelou uma hiperemia conjuntival: um aumento do fluxo sanguíneo causado por uma inflamação dos olhos (conjuntivite). “Sangramento associado às lágrimas pode ocorrer no contexto de infecção, inflamação ou trauma no olho ou nas estruturas circundantes, tumores vasculares do olho ou estruturas circundantes ou epistaxe retrógrada”, afirma o estudo. Após um ano de acompanhamento, o paciente não apresentou mais episódios de lágrimas de sangue.

Um estudo de 2004 publicado na Ophthalmic Plastic & Reconstructive Surgery, acompanhou três crianças, um menino e três meninas, com idades entre 6 e 14 anos, todos com “sangramento espontâneo”. Como em muitos dos outros casos, os pacientes foram submetidos a uma bateria de testes, mas todas as taxas eram totalmente normais. O sangramento parou sozinho, sem consequências duradouras.

Essa hemolacria aparentemente aleatória “raramente é encontrada na prática clínica”, escreveram os autores. Causas comuns são traumas físicos, tumores oculares, doenças do sistema lacrimal, distúrbios hemorrágicos, reação a certos medicamentos, endometriose e hemorragias nasais “retrógradas” – o sangue do nariz começa a vazar pelos olhos.

Certas infecções sistêmicas também estão associadas a hemolacria. Mais notadamente, a doença causada pelo vírus Ebola danifica o revestimento dos vasos sanguíneos, causando hemorragias, que em alguns casos podem ser externa – olhos, nariz ou outros orifícios.

O médico bizantino Aécio de Amida, que viveu entre 502 d.C. e 575 d.C., descreveu algumas doenças infantis que envolviam sangue vazando pelo canto do olho. Rembertus Dodoens, um médico belga do século XVI, associou casos de hemolacria à menstruação em mulheres adolescentes. De fato, é possível que alguns casos estejam relacionados a alterações hormonais: um estudo de 1991 testou por sangue oculto nas lágrimas de 125 voluntárias e encontrou vestígios em quase um quinto delas, na maioria das vezes durante o ciclo menstrual.

Um médico da Universidade do Tennessee, Barrett Haik, dedicou-se a estudar o fenômeno entre 1992 e 2003. Nesse período, foram registrados apenas quatro casos de hemolacria sem uma causa médica conhecida. O coautor da pesquisa com Haik, o oftalmologista James Fleming explica que, esses casos são mais comuns em jovens, e à medida que uma pessoa com hemolacria envelhece, o sangramento diminui até parar completamente. E apesar da imagem chocante, as condições do fenômeno não foram associadas a nenhuma doença grave e fatal.

Em 2010, a National Geographic contou a história de um caso de uma menina indiana de 14 anos, chamada Twinkle Dwivedi, que se tornou famoso por muitas pessoas acreditarem que o fenômeno seria uma farsa criada pela mãe da menina.

No ano seguinte, um outro caso ficou famoso no Brasil. Uma adolescente cearense de 17 anos sangrava pelos olhos quando fica nervosa, triste ou ansiosa. A condição acabou prejudicando bastante seu desempenho escolar, o que fez com que a família tivesse que se mudar para São Paulo em busca de tratamento.

Observada por uma equipe de oftalmologistas, neurologistas, especialistas em coagulação, psicólogos e psiquiatras, a garota foi diagnosticada com disfunção neurovegetativa com alteração na vasomotricidade. Os vasos sanguíneos que ficam próximos aos olhos se rompem com o aumento da pressão, causada por um gatilho emocional. Parentes relataram que a jovem começou a sangrar aos 14 anos, quando trabalhava como babá e foi agredida pela patroa.

Via: ScienceAlert/Insider/Science Times/Science Mag/G1

Editor(a)

Renato Mota é editor(a) no Olhar Digital