Em “O Homem que Mudou o Jogo”, filme baseado no livro “Moneyball: The Art of Winning an Unfair Game”, de Michael Lewis, Billy Beane, o gerente geral da equipe de baseball Oakland Athletics, decide revolucionar a forma como os jogadores são escalados para a equipe e, com isso, mudar um processo que já durava décadas. A decisão era ousada, arriscada e com grandes chances de dar errado. Assim como qualquer ideia genial.
Duvida? Veja, por exemplo, a Apple. Steve Jobs precisou reinventar os negócios da empresa para tirá-la da rota de fracasso que estava destinada a seguir se continuasse tentando superar os grandes players da informática em seus próprios domínios.
A Netflix tem um quê de Billy Beane e pouco de Jobs em seus negócios. Não que ela tenha tido qualquer relação direta com os dois, mas seguiu o exemplo e reformulou os seus negócios para continuar no topo sempre que via sua liderança ser ameaçada.
O início
Em 1999, ela nasceu como um serviço de entregas de DVDs por correio em que o usuário alugava os filmes que gostaria de assistir pagando US$ 0,50 por título e, posteriormente, uma taxa fixa mensal com filmes ilimitados, e os recebia em casa por envio postal.
A estratégia prometia desbancar as locadoras que faziam o interessado ir até o local para escolher os filmes e devolvê-los pessoalmente. Se a entrega fosse com atraso, o consumidor ainda arcaria com uma multa, o que não existia na Netflix.
Para se ter ideia do sucesso da empresa, em 2000, ela ofereceu US$ 50 milhões para comprar a concorrente Blockbuster, oferta que foi declinada pela companhia. Em 2005, a empresa enviava um milhão de DVDs por dia. Dois anos depois, ela entregou seu bilionésimo disco.
O tempo passou, as conexões com a internet melhoraram e os DVDs foram caindo em desuso. Ter que esperar um dia útil para assistir um filme era muito tempo. A pirataria ganhou força e usuários do mundo inteiro usavam programas como Kazaa e Emule para fazer o download de seus filmes prediletos de graça e sem qualquer esforço físico. A Netflix viu que precisava mudar.
A primeira mudança
A hora de reformular os negócios chega ainda em 2007. Por mais ágeis que fossem os entregadores dos correios, não havia como competir com o download caseiro. A banda larga já era bem comum, o YouTube já estava no ar – com diversas produções pirateadas que a empresa tentava barrar todos os dias –, e começava a febre dos smartphones.
A solução foi apostar no streaming. O plano inicial oferecia a exibição ilimitada do catálogo de seu catálogo pela taxa mensal de US$ 7,99. Além disso, até 2011, era possível arcar com o pagamento de mais US$ 2 por mês e continuar recebendo filmes em DVD em casa – um alívio para quem não possuía planos de internet que possibilitassem a exibição dos longas.
Como é de conhecimento geral, deu certo. O serviço começou a ser expandido para outros países. Em 2011 chegou até a América Latina. A partir de 2012 na Europa e atualmente em todo o mundo, exceto na China, Síria, Coreia do Norte e em parte do território da Crimeia.
O número de assinantes também não deixa mentir sobre o sucesso. Em dezembro de 2012, a Netflix contava com 29 milhões de clientes no mundo. Hoje, são 83 milhões em todo o planeta, sendo que 47 milhões estão nos Estados Unidos.
O mercado, no entanto, não perdoa. Com o sucesso da empresa pioneira, outras concorrentes chegavam apostando na fórmula de sucesso da Netflix e oferecendo assinaturas com preços mais baixos.
A rivalidade com as operadoras de TV a cabo que viam seus clientes migrarem para o serviço de streaming também crescia. As empresas cobravam cada vez mais caro para permitirem que a Netflix aumentasse o seu catálogo de filmes e séries. Canais como HBO e TNT não permitiam a transmissão de seus conteúdos próprios e alimentavam a esperança de que as produtoras parceiras batessem a porta na cara da Netflix, o que aconteceu algumas vezes.
Uma delas foi com a Warner, ainda em 2013. A produtora norte-americana retirou 1.794 filmes do catálogo do serviço de streaming para impulsionar sua própria locadora virtual, a Warner Archieve Instant. Entre os excluídos, estão filmes como “007 Contra o Satânico Dr. No”, “Segundas Intenções” e 15 temporadas do seriado animado “South Park”.
Era preciso, mais uma vez, mudar.
Originalidade
A segunda “revolução netflixiana” aconteceu quando a empresa resolveu investir em produções originais. Que atire a primeira pedra quem não conhece “House of Cards”, “Orange is the New Black”, “Narcos”, ou o sucesso recente “Stranger Things”.
A ideia nasceu ainda em 2013, quando a empresa viu que seus rivais não eram mais os serviços de streaming, mas sim as operadoras de TV a cabo e canais como HBO. Se eles tinham condição de produzir conteúdo de qualidade, como “Game of Thrones” e “True Blood”, a Netflix também tinha.
Estrelada por Kevin Spacey, “House of Cards” desembarca no serviço naquela com a temporada inteira disponível de uma só vez, um elenco de peso trabalhando em cima de um roteiro espetacular. A missão era uma só: revolucionar.
“O objetivo é se tornar a HBO mais rapidamente do que a HBO possa se transformar em nós”, disse Ted Sarandos, executivo responsável pelo conteúdo da Netflix, em entrevista à revista GQ quando o seriado foi lançado. Se as produtoras um dia fecharam suas portas para a empresa, essa resolveu construir suas próprias portas.
E não foram apenas as séries. Mais recentemente, filmes começaram a chegar ao serviço. Antes mal vistos e considerados “rebaixados” por estrearem na TV e não nas telonas dos cinemas, os longas da Netflix em nada devem para as produções hollywoodianas. “Fundamentals of Caring” e “Beasts of No Nation” são alguns exemplos disso.
Em suma, vale a máxima: se for fazer algo, faça com qualidade. A Netflix realizou grandes apostas que podiam colocar tudo a perder. Os segredos do sucesso? Qualidade e olhos voltados para o consumidor e para o mercado.
Cace ou seja caçado
As revoluções da Netflix não devem parar de ocorrer. Se a empresa hoje se dá ao luxo de poder se acomodar em um mercado específico, amanhã ela poderá ter que bolar uma nova estratégia para continuar liderando. Claro que não dá para prever o que irá acontecer, mas julgando o comportamento de quem comanda a bilionária ex-locadora, não dá para imaginar algo diferente.
A locadora dos anos 1990 hoje se tornou um império midiático que compete de igual e enfurece as operadoras de TV, uma atitude que deixaria até mesmo o congressista Frank Underwood, protagonista de “House of Cards” orgulhoso. Já dizia o personagem, “para aqueles que estão escalando até o topo da cadeia alimentar, não pode haver misericórdia. Só há uma regra: cace, ou seja caçado”.