* Por Roberto Nucci Riccetto
A universalização do acesso à internet é uma realidade presente em diversos países que também se estende ao Brasil.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, constatou no ano de 2017 que 74,9% dos domicílios brasileiros navegam na internet, ou seja, 3 em cada 4 domicílios a utilizam.
A potencialidade da internet em impactar a sociedade é imensurável. Por exemplo, ela tem a aptidão de influir diretamente na relação entre o Estado e seus cidadãos, de forma a ampliar a participação social, transparência e eficiência.
Assim, na perspectiva de alargamento dos princípios, direitos e garantias fundamentais expostos na Constituição da República Federativa Brasileira de 1988, a internet se revela como um serviço essencial, já que se tornou instrumento não só de disseminação de informação, mas também de fiscalização e contribuição social nas decisões políticas, sendo inclusive plataforma utilizada em campanhas eleitorais.
No entanto, apesar dos avanços institucionais no sentido de universalizar a internet, ainda é preciso percorrer um intricado caminho até a sua consolidação como ferramenta de aprofundamento da democracia.
Entre as políticas públicas elaboradas pelo Estado Brasileiro no sentido de universalizar o acesso à internet, destaca-se o Plano Nacional de Banda Larga, instruído pelo Decreto Federal n.º 7.175 de 12 de maio 2010. De acordo com Anatel, esta política pública teve vigência até 31 de dezembro de 2016, sendo que as empresas Grupo Oi, Algar, Telefônica (Vivo) e Sercomtel, junto à Anatel, firmaram acordo para massificar a oferta por varejo a 5.385 municípios, a oferta por atacado a 4.161 municípios, e a oferta por satélite a 185 municípios (BRASIL, 2016).
Em substituição ao Plano Nacional de Banda Larga, foi editado o Decreto Federal n.º 9.612 de 17 de dezembro de 2018, que estabelece a expansão do acesso à internet como objetivo geral das políticas públicas de telecomunicações.
Ademais, menciona-se o Marco Civil da Internet, criado pela Lei n.º 12.965/2017, que institui os princípios, garantias, direitos e deveres para o uso e funcionamento da internet.
Em síntese, estas iniciativas visam massificar a internet como infraestrutura necessária ao desenvolvimento nacional e garantir o seu funcionamento com base em princípios democráticos, entre os quais se destaca o da preservação e garantia da neutralidade da rede.
Especificamente em relação ao Poder Público, diversas normas, ao longo da última década, estabelecerem o dever de utilização da internet como ferramenta para difusão de informação e participação social.
O Marco Civil da Internet, por exemplo estabeleceu como diretriz a promoção de governo eletrônico e a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) obrigou a disponibilização de dados governamentais em seus sítios eletrônicos.
Segundo a Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação no Setor Público Brasileiro de 2017, 90% dos órgãos públicos federais e estaduais possuem sítio eletrônico.
No entanto, a mesma pesquisa revelou que aproximadamente metade (51%) dos usuários com 16 anos ou mais alegou não ter realizado atividades de governo – serviços públicos disponíveis na internet–eletrônico por considerar complicado usar a rede para o contato com o governo, e outros 25% mencionaram que ter dificuldade para encontrar os serviços que precisam na internet.
Neste cenário, com objetivo de melhorar a qualidade dos serviços eletrônicos públicos, recentemente, novas normas foram criadas: Lei Geral de Proteção de Dados, Lei da Liberdade Econômica e o Decreto Federal n.º 10.046/2019.
A Lei Geral de Proteção de Dados, criada pela Lei 13.709/2018 entrará em vigor integralmente em agosto de 2020, criando regras específicas de tratamento de dados para o setor público.
Determina, por exemplo, que sejam informadas as hipóteses em que, no exercício de suas competências, realizam o tratamento de dados pessoais dos usuários de serviço público, fornecendo informações claras e atualizadas sobre a previsão legal, a finalidade, os procedimentos e as práticas utilizadas para a execução dessas atividades. Todas estas obrigações deverão ser disponibilizadas preferencialmente por meio da internet.
Por sua vez, a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, criada pela Lei 13.874/2019, inova com relação à governança pública digital, pois permite o armazenamento eletrônico de documentos públicos e prevê que registros públicos, realizados em cartório, podem ser escriturados, publicados e conservados em meio eletrônico.
Por fim, foi editado o Decreto Federal n.º 10.046, de 9 de outubro de 2019, que cria o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados, com o objetivo de facilitar o acesso dos cidadãos aos serviços governamentais, por meio de uma interface unificada de atualização cadastral, suportada por soluções tecnológicas interoperáveis.
Isto é, a partir de tecnologias da informação e comunicação (TIC), o Governo Federal irá unificar todas as informações pessoais possíveis de serem mensuráveis, como dados laborais, biológicos e registrais, exceto os dados genéticos.
Não obstante o esforço do Executivo federal em aprofundar a governança digital, com a criação de diversos serviços eletrônicos, o Decreto Federal n.º 10.046/2019 se coloca na contramão de todas as normas afeitas à internet, à proteção de dados e à governança digital.
Com efeito, a criação de um colossal banco de dados controlado somente pelo Executivo federal, sem a presença da sociedade civil e de outras instituições, já coloca em risco o uso destas informações.
Além disso, como estabelecido pela Lei Geral de Proteção, a proteção à privacidade significa que os dados fornecidos só podem ser usados para o mesmo fim para o qual você as forneceu. Assim, o Poder Público não pode, sem autorização prévia, manipular de forma ilimitada os dados pessoais que dispõe.
Portanto, a criação de um sistema único para o compartilhamento de dados geridos pelo Poder Público, sem a devida fiscalização da sociedade civil e em desrespeito à privacidade, apresenta-se como uma potencialidade extremamente negativa da internet, já que configura o Estado a partir de bases autoritárias.
A utilização da internet pelo Poder Público deve ocorrer no sentido de promover a democratização, transparência e accontability, ou seja, deve construir uma governança pública digital democrática.
Diante do comportamento do Brasil em massificar o acesso à internet e instrumentalizá-la como ferramenta essencial para o fortalecimento da democracia, diversos avanços ocorreram ao longo da última década, no entanto, a utilização da internet como meio de manifestação autoritária deve ser imediatamente rechaçada.
* Roberto Nucci Riccetto é advogado e sócio de Rubens Naves Santos Jr. Advogados
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Olhar Digital