A inteligência artificial pode ameaçar nossos empregos?

Quanto mais previsíveis são as tarefas relacionadas a um emprego, mais passível de automação ele é
Redação22/06/2018 14h49, atualizada em 22/06/2018 14h53

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Artigo escrito por Kadu Vido, da Udacity*

Acredito que o conceito de inteligência artificial não soe tão estranho a ninguém que, como eu, tenha crescido nos anos 80 e 90, em meio a grandes marcos da ficção científica. O tema é assunto central de Blade Runner, Star Trek e Exterminador do Futuro. Leitor assíduo, fui remetido por essas séries e filmes para a bibliografia de autores como Philip K. Dick e Isaac Asimov, que exploram com empenho o assunto.

Nessas séries, as IAs em geral eram personagens carismáticas e com personalidade própria, quase “gente como a gente”. A realidade não poderia estar mais distante, como qualquer desafortunado interlocutor de um chatbot de suporte certamente pode atestar. Os avanços mais recentes na área, porém, talvez estejam prestes a cumprir uma das profecias do passado: o conflito entre a humanidade e as máquinas – não pelo planeta, mas certamente por empregos.

Estamos chegando a um ponto em que está próxima a concretização da previsão feita pelo economista britânico John Maynard Keynes em 1933: o desenvolvimento da otimização de empregos – por meio da automação – está ultrapassando a criação de novas aplicações para a mão de obra existente.

A implantação de novas tecnologias, que alguns estão chamando de “quarta revolução industrial” ou “indústria 4.0”, promete transformar o mercado de trabalho no mundo inteiro: segundo estudos de instituições como McKinsey Global Institute (MGI), Citi, Universidade de Oxford e outras, a inteligência artificial potencialmente ameaça cerca de 50% dos empregos na Europa e nos Estados Unidos. Em países em desenvolvimento, os números ultrapassam 70%. Neste artigo, tentarei explicar um pouco do que significa essa nova revolução, como ela afeta o mercado e como estar pronto para as mudanças.

O impacto da inteligência artificial no mercado 

Não deveria ser novidade que a automação vá substituir empregos humanos. Um dos objetivos da robótica sempre foi esse, e seu escopo se resume ao que se conhece como os três Ds da robótica: dirty, dangerous, and dull. Resumidamente, os termos se referem a tarefas tão diversas como mineração e inspeção de canos de petróleo (sujas), exploração espacial e desarmamento de explosivos (perigosas) ou linhas de montagem e limpeza de ambientes domésticos (tediosas). 

Todas são funções mais adequadas para robôs do que para humanos, seja por serem degradantes, por apresentarem risco excessivo à vida ou simplesmente por serem simples e repetitivas e não exigirem a inteligência de um ser humano para realizar. Entretanto desenvolvimentos recentes em tecnologia estão transformando esse panorama.

O nascimento da internet e o desenvolvimento de processadores mais rápidos permitiu o avanço acelerado de um campo da inteligência artificial conhecido como aprendizagem de máquina. Trata-se de um conjunto de técnicas capazes de processar grandes volumes de dados e, a partir de relações estatísticas entre eles, desempenhar diversos tipos de tarefas.

Algoritmos progressivamente mais sofisticados podem ser aplicados em situações cada vez mais complexas e arriscadas – como os carros autônomos que já rodam pelas ruas dos Estados Unidos. Em comparação a robôs de linhas de montagem, que apenas repetem as mesmas instruções ad infinitum em um ambiente isolado de riscos externos, navegar o trânsito de uma grande cidade é muito mais abstrato e, por isso, mais desafiador.

Graças à aprendizagem de máquina, também podem se tornar substituíveis empregos que exigem maior nível de escolaridade. A Harvard Business Review descreveu em um artigo um sistema capaz de desenvolver um relatório detalhado sobre um tópico técnico para os altos executivos de uma empresa. O algoritmo era capaz de utilizar plataformas de contratação de freelancers, como o Amazon Mechanical Turk, para executar cada uma das tarefas necessárias: pesquisa do tema, validação técnica, redação e revisão.

Comparações à primeira revolução industrial são ingênuas frente às novas circunstâncias: enquanto naquela a automação era uma forma de aumentar a capacidade produtiva dos trabalhadores, nesta estamos falando de substituição da mão de obra humana e, portanto, de menor potencial de criação de novos empregos. Isso se deve ao fato de que, ao contrário de equipamentos físicos, estamos falando de software, e um único desenvolvedor pode criar cópias ilimitadas de um sistema sem precisar de aumento de mão de obra. 

É a mesma tendência que observamos em outros setores que foram digitalizados durante a última revolução industrial – um exemplo é o caso da Blockbuster, que em seu auge chegou a valer 5 bilhões de dólares, com 9 mil lojas e 60 mil funcionários por todo o mundo. Sua sucessora digital, a Netflix, recentemente ultrapassou 100 bilhões de dólares com pouco mais de 5 mil funcionários.

Como regra geral, quanto mais previsíveis as tarefas relacionadas a um emprego, mais passível de automação é o mesmo. É uma das conclusões do relatório do MGI, que também indica que a criação de novas vagas de trabalho dependerá do crescimento de áreas que exijam especialistas, produção criativa e interação com outras pessoas.

Em termos mais práticos, o relatório calcula também a parcela da força de trabalho atual de diversos países que poderia ser substituída pela automação até 2030. Destacam-se Japão, onde cerca de 26% dos empregos atuais (ou 15,5 milhões) podem ser automatizados, e Estados Unidos, com cerca de 23% (ou 38,6 milhões), em contraste com Argentina – 10% ou 2,1 milhões – e Peru – 7% ou 1,5 milhões. De forma geral, os valores indicam uma correlação direta entre o produto interno bruto per capita e a porcentagem de empregos ameaçados.

É importante entender, todavia, que todas as previsões feitas pelo MGI levam em conta a adoção máxima da automação. Em análise sobre o tema, os filósofos políticos Nick Srnicek e Alex Williams apontam um fator externo à tecnologia que influenciará fortemente essa equação: a força dos movimentos trabalhistas.

Quando fortes, sua defesa dos interesses dos trabalhadores causa o aumento nos custos da mão de obra para empregadores, o que torna o custo da adoção tecnológica mais viável e aumenta sua difusão. Comparativamente, a flexibilização desses interesses torna a mão de obra humana mais barata, facilitando a manutenção de empregos que poderiam ser automatizados.

Embora muitos autores pintem essas mudanças em cores apocalípticas, com desemprego fora de controle e concentração de renda ainda maior, não é preciso ser assim: diversas medidas já estão em discussão por todo o mundo para direcionar os efeitos da automação. Podemos, por exemplo, nos voltar para os livros de história: estima-se que, na Inglaterra pré-revolução industrial, operários trabalhavam entre 53 e 69 horas por semana, entre 30% e 70% mais que o usual nos dias de hoje.

Existem diversas medidas possíveis para combater os efeitos negativos da IA sobre os trabalhadores sem dificultar sua adoção. Movimentos sindicais europeus já estão lutando por uma redução da semana de trabalho, e recentemente conquistou 28 horas na Alemanha. Outros países estudam a adoção da chamada renda básica universal, que seria uma espécie de salário oferecido pelo governo suficiente para cobrir gastos essenciais com saúde, educação, habitação e alimentação. Apesar de enfrentar muita resistência de setores da sociedade, a ideia tem o apoio de economistas de renome, como o especialista em desigualdade Thomas Piketty e os laureados com o Nobel da economia Joseph Stiglitz, Chris Pissarides e Peter Diamond, entre outros.

A situação da inteligência artificial no Brasil

Erra quem crê que essa tendência não vai chegar ao Brasil: as previsões do MGI indicam potencial automatização de cerca de 14% da nossa força de trabalho, podendo afetar 15,7 milhões de empregos. Além do desenvolvimento de melhores robôs agrícolas e de extração mineral, isso também vai se observar nas grandes cidades.

Posições de média gerência já são rotineiramente substituídas, por exemplo, em empresas de entrega e transporte sob demanda, como as brasileiras SpoonRocket, Rappi e 99 Táxis. Nelas, os prestadores de serviço dificilmente têm contato com um gerente humano: é um algoritmo que decide quem vai ser enviado para atender a um cliente e qual será o valor pago, além de monitorar as avaliações e tomar providências quando necessário.

Também é necessário rever a ideia de que estamos atrás em todas as tecnologias de ponta. Embora nossas universidades tenham verbas de pesquisa cada vez mais restritas devido a cortes de investimento – que muito dificultam a competição com grandes instituições internacionais –, ainda temos diversos núcleos de pesquisa em inteligência artificial. Tomando como exemplo carros autônomos, há sete grupos de pesquisa no Brasil, com destaque para o CaRINA, da Universidade de São Paulo, que já proporcionou a criação da primeira startup dessa área no Brasil: a 3D Soft, baseada em São Carlos.

A adoção de inteligência artificial pelo setor privado não fica atrás: parte do crescimento do Magazine Luiza nos últimos anos se deve também ao seu sucesso no desenvolvimento e aplicação de técnicas de aprendizagem de máquina para recomendação de produtos, que permitiram amplificar as vendas da plataforma. Outro bom exemplo é a Dafiti, que está começando a desenvolver técnicas de visão computacional para recomendação de estilo de roupas e calçados para seus clientes – um recurso semelhante ao que foi recentemente anunciado pela Amazon como uma das novas funções do sistema Alexa.

Os principais obstáculos para uma adoção mais difundida de técnicas desse tipo no Brasil são talvez os que se esperaria de um país em desenvolvimento: a falta de profissionais capacitados na área e os poucos incentivos do governo para facilitar a adoção dessas tecnologias. Inclusive, se a hipótese de Srnicek e Williams for válida, a última reforma trabalhista pode diminuir a pressão sobre as empresas para que elas se adaptem às novas tendências de automação. 

Como se preparar para estas transformações

As organizações que adotarem rapidamente essas novas tecnologias podem adquirir uma vantagem enorme sobre seus competidores. O último relatório do MGI sobre o tema indica que aquelas que declaram utilizar IA amplamente chegam a investir mais de 25% dos seus orçamentos de pesquisa e desenvolvimento no tema, projetando crescimento de receita acima de 10%. 

Os ganhos financeiros permitirão também que empresas com esse perfil tenham maior capacidade de atrair e reter talento, o que possibilitará que se destaquem ainda mais do restante do mercado e garantam uma posição de liderança em seus setores. Já é esse o caso de gigantes como Alphabet, Baidu, Microsoft e outras.

Para quem busca empregos, o instituto prevê que a demanda por competências tecnológicas, desde informática básica até análise de dados e programação, cresça aceleradamente até 2030. A previsão é que essa tendência continue se aplicando a profissionais em todos os níveis de capacitação.

Também é prevista uma alta na demanda por capacidades emocionais, sociais, criativas e críticas, que as máquinas estão longe de alcançar. Nestas categorias, entram tomadores de decisão, gestores, profissionais que trabalham diretamente com o público e artistas. Em contraponto, posições que exigem apenas coordenação motora, alfabetização ou habilidades matemáticas básicas serão progressivamente substituídas pela automação.

Como tendência geral, a adoção do aprendizado contínuo se torna essencial ao profissional do futuro que queira ter uma carreira de sucesso. Será necessário constantemente se atualizar e adquirir novas habilidades para estar a par de tecnologias em evolução incessante e cada vez mais ágil nas empresas de ponta.

Sobre o autor

*Kadu Vido é especialista em Machine Learning e AI da Udacity Brasil, bacharel em Ciências Moleculares pela USP e mestre pela Universidade de Sydney, onde desenvolveu pesquisa por dois anos nas áreas de aprendizagem de máquina e robótica probabilística.

As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do Olhar Digital.

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