Brasileiros contam como é trabalhar em empresas de tecnologia na Europa

Redação30/11/2017 15h28, atualizada em 02/12/2017 13h00

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DUBLIN, Irlanda — São mais de dez horas de viagem, o afastamento de família, amigos e tudo aquilo que contribuiu para a formação da sua personalidade ao longo dos anos. Sem contar o trabalho que dá se acostumar a uma vida em que qualquer coisa vai soar diferente: a língua, as roupas, o dinheiro, o clima, a comida… a cultura, em geral. Mesmo com todos esses poréns, dia sim, dia não tem brasileiro embarcando de um aeroporto internacional para vir fazer carreira na Europa.

O mercado de tecnologia é um dos que mais fazem brilhar os olhos dos que optam pela migração. O que faz sentido quando se leva em conta que são principalmente as empresas do setor, com suas mesas de pingue-pongue em escritórios coloridos, que vêm contribuindo para redefinir o que representa a palavra “emprego”. E um número cada vez mais significativo de empresas de tecnologia está nascendo em países europeus, a exemplo da sueca Spotify, da britânica Shazam e da alemã Trivago, embora as mais chamativas por aqui ainda sejam as americanas.

“Muitas empresas hoje, por conta da questão das mudanças nas leis de privacidade na Europa, estão começando a ter que pensar em como montar sua infraestrutura dentro da Europa. Dentro de países que tenham mais rigorosidade com essa questão de armazenamento de dados”, destaca Eduardo Giansante, que há mais de três anos trabalha como global community manager no Dropbox da Irlanda, onde mora há quase uma década.

Ele faz parte de uma comunidade crescente de brasileiros que chegaram ao velho continente nos últimos anos e acabaram se encontrando no mercado tecnológico. O Olhar Digital passou as últimas semanas conversando com vários desses profissionais para mostrar a você, leitor, como funciona a migração, o que é preciso para tomar esse passo e os prós e contras envolvidos em uma iniciativa tão grande.

A PARTE POSITIVA

Talvez isso surpreenda o leitor, mas o salário e as condições de trabalho não são as primeiras coisas que saltam à mente quando uma dessas pessoas se depara com a pergunta: qual é a parte positiva? Quase todos com quem conversamos para esta reportagem citaram a convivência com o diferente como um dos principais pontos altos sobre trabalhar na Europa. Para André Munhoz, que está na Tchéquia atuando como gerente de e-commerce da Avast para o mercado brasileiro, trata-se de uma experiência “impagável”. “Acima de tudo, pra mim, o que é mais importante é o fato de poder trabalhar com pessoas do mundo todo”, comentou. “Só no meu departamento são seis nacionalidades.”

Manuela Magalhães, que, assim como Munhoz, atende brasileiros mesmo estando do outro lado do oceano, disse algo parecido. Ela atua como gerente sênior na área comercial da Taboola e mora em Londres, na Inglaterra. “O bom de estar aqui (…) é esse fato de ser bastante multicultural. Você poder estar sentado na hora do almoço na empresa trocando ideias com o colega que é francês, com o colega que trabalha para o mercado da Espanha, com o colega que trabalha para o mercado italiano…”, acrescentou ela. “Eu acho que [se] ganha muito trabalhando com pessoas de vários lugares do mundo, com experiências de vida diferentes. E eu acho que isso também te faz crescer bastante (…), a sua área de conhecimento aumenta.”

“Antes de me mudar, eu achei que as diferenças seriam bem maiores, mas depois de um ano por aqui posso dizer que o trabalho em si não é tão diferente no sentido do que se tem para fazer no dia-a-dia”, relata André Michi, que é system engineer na OLX da Alemanha. “A maior diferença na minha opinião é conviver com pessoas de outras culturas e nacionalidades. Eu particularmente prefiro trabalhar aqui porque posso conhecer pessoas de diferentes partes do mundo. A escala do que faço hoje tem impacto global, sinto que o trabalho técnico aqui é mais valorizado do que no Brasil.”

Mas é claro que não é só isso. O segundo destaque daqui para os entrevistados é a qualidade de vida de uma forma geral. Como destaca Leonardo Bandeira, que trabalha como formador no Airbnb, treinando os funcionários, “trabalhar na Europa garante que o rendimento médio seja suficiente para alimentação, moradia e lazer, [enquanto] no Brasil muitas vezes é preciso buscar complementos de renda”. “Também há a vantagem de trabalhar em cidades menores, com melhor infraestrutura, sem o estresse das grandes metrópoles no Brasil”, acrescentou ele, que mora no Porto, em Portugal.

Essa questão também foi levantada por Virgilio Afonso Jr., que está em Hamburgo, na Alemanha, trabalhando como frontend engineer na eSailors: “Estava acostumado com São Paulo, dirigindo três horas por dia no trânsito”, lembrou. “Hoje não tenho carro, demoro 10 minutos de metrô. Com certeza o meu dia rende muito mais.” Eduardo Giansante, do Dropbox, ressaltou ainda que o europeu, em geral, não costuma ter sua vida organizada em torno do trabalho, então, quando deu o horário de ir embora, “a caneta cai”. Mas isso, claro, vale para empresas que não importaram o jeito americano de se trabalhar, já que, assim como o Brasil, os EUA cultivam uma cultura em que funcionário e empresa muitas vezes parecem incapazes de se manter distantes. Isso significa que a cultura local nem sempre se aplica ao mercado de tecnologia, porque ele tem justamente o norte-americano como modelo.

MAS EU TERIA CHANCE?

Sim. Com a ressalva de que é impossível prever o sucesso ou insucesso de alguém; quem se prepara tem boas chances de dar certo no mercado europeu, e parte disso se deve ao simples fato de você ter nascido e crescido no Brasil.

“O brasileiro é muito bem visto aqui na Europa, em Londres principalmente, porque o brasileiro é um povo muito criativo”, afirma Manuela Magalhães, da Taboola. Ela analisa ainda que, talvez porque a experiência internacional é gratificante para os profissionais do nosso país, eles acabam sendo mais esforçados que a média. Opinião semelhante foi expressa por todos os entrevistados. “O brasileiro no geral é conhecido por ser uma pessoa apaixonada pelo que faz, que dá o sangue”, acrescentou André Munhoz, da Avast. André Michi, da OLX, disse algo parecido: “Lógico que nem todos os países têm a mesma percepção, mas no geral somos reconhecidos como disciplinados e focados.”

“Há muitas oportunidades, principalmente para os profissionais de tecnologia. Tem muita possibilidade aqui porque as empresas realmente necessitam de pessoas com habilidades específicas, com certificações específicas para que elas possam desenvolver projetos”, comenta Priscylla Finneran, que é recrutadora sênior na Origin Multilingual. Eduardo Giansante, do Dropbox, acrescentou que o brasileiro tem uma qualidade que o europeu não costuma apresentar: a flexibilidade de mudança, algo que combina muito bem com o perfil das startups. “E a gente não vê isso como uma coisa ruim, e sim algo que faz parte do todo”, disse ele.

A PARTE NEGATIVA

A abertura deste texto resume o que se enfrenta durante um processo migratório, mas na vida real a situação pode ser ainda mais dramática. Há inúmeros cenários negativos, e muitas vezes eles independem de quão preparada a pessoa estava quando tomou a sua decisão. Talvez por isso uma das coisas mais repetidas durante as entrevistas tenha sido alguma variante de “pense bem”.

É preciso, em primeiro lugar, levar em conta as coisas óbvias, como diferenças de clima, culturais e de legislação — inclusive a trabalhista. Porque constantemente essas diferenças vão parecer esquisitas. Por exemplo, há cidades na Europa em que o dono da casa pode proibir o inquilino de fumar dentro da sua propriedade, e onde motorista com criança como passageira não pode acender um cigarro dentro do próprio carro, enquanto que, em outros lugares, ainda é permitido fumar até em bares e restaurantes.

A atenção às normas pode ser determinante para o sucesso da sua empreitada. Até porque nem todo povo tem margens de tolerância tão largas quanto o brasileiro, e isso pode surpreender quem desembarca num país europeu onde as pessoas pagam passagem de trem mesmo que a estação não tenha catracas. Para evitar problemas, Leonardo Bandeira, do Airbnb, tem uma dica curta e direta: “Tenha todos os documentos em dia, faça tudo certo; sem jeitinho.”

Ele também destacou a importância sobre se preparar: “Antes de migrar, certifique-se que tem uma reserva financeira que permita ultrapassar o período de adaptação, pois podem acontecer muitas surpresas e gastos inesperados. Há muita gente que, por falta de planejamento, se vê forçado a dormir em quartos compartilhados sem nenhum conforto, e a pagar caro.”

Quem mora fora do país ainda precisa manter o olho aberto para um fenômeno conhecido como “homesickness”, que para nós poderia ser traduzido simplesmente para “saudade de casa”, o que traz uma definição bem explícita. Esse tal fenômeno pode ser engatilhado por qualquer coisa, como falta de legendas em português na Netflix ou o fato de que sua banda preferida não disponibilizou suas músicas no Spotify do país onde você está. Mais do que isso, a pessoa que tem um oceano de distância entre sua casa atual e todos os amigos e familiares pode acabar se sentindo isolada, ainda mais porque o brasileiro é mundialmente reconhecido como um povo aberto e comunicativo, o que não é regra na Europa.

“Eu gosto bastante de trabalhar com o mercado brasileiro”, disse Manuela Magalhães, da Taboola. “É diferente, o povo do Brasil é diferente. É mais receptivo, mais amigável até na hora de fazer negócio. O inglês é mais fechado, mais direto… não é tão receptivo.” É importante ter esse tipo de relato em mente; mais uma vez, cabe o “pense bem”.

COMO MIGRAR

Pensou? Então é hora de agir. Embora não dê para antecipar se uma pessoa será ou não bem sucedida em uma aventura pela Europa, há uma série de iniciativas que contribuem para reduzir as possibilidades de falha. E a primeira delas é aprender a falar inglês, porque este é o idioma que permite fazer negócios no mundo todo. Até Bandeira, que trabalha para o Airbnb em Portugal, contou que precisava disso no currículo: “Consegui a posição através de um site de empregos em que procuravam pessoas fluentes em língua inglesa e francesa. Como eu possuía as qualificações, o processo de admissão foi muito simples.”

O Brasil é fraquíssimo nesse ponto, tanto que ocupa a posição de número 41 no [Índex de Proficiência em Inglês (EPI), que na edição 2017 incluía 80 países. Apenas Distrito Federal, Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo e Santa Catarina têm resultados moderados no ranking, e nenhum estado brasileiro apresenta nível alto ou muito alto de proficiência. O interessado em trabalhar na Europa, portanto, precisa remar contra a maré.

“O inglês não é a nossa primeira língua, então a primeira dificuldade que a gente encontra como profissional tentando vir para a Europa é realmente dominar o idioma de uma maneira que, apesar de não ser a sua primeira língua, você consiga trabalhar, se comunicar muito bem, negociar, convencer, ter a mesma habilidade de comunicação, ou ao menos similar, à que você teria no seu idioma. Essa é a primeira desvantagem. A maioria das pessoas, quando chegam aqui, não dominam o idioma, tanto que uma grande porcentagem vem realmente para aprender e aperfeiçoar o inglês”, explica a recrutadora Priscylla Finneran.

“Eu tenho um caso”, contou ela. “De um cara que era o menos experiente de todos com quem ele estava competindo e basicamente ele conseguiu a vaga de trabalho pela habilidade de comunicação — óbvio, ele tinha uma experiência super legal também, mas [ganhou] pela simpatia e pela habilidade de comunicação. Ele se vendeu muito melhor do que os outros e hoje é um dos gerentes de operação da Microsoft.”

Uma forma eficiente de conseguir o inglês é ingressando em um intercâmbio. Este é um mercado em ascendência no Brasil, tendo movimentado US$ 2 bilhões em 2016, de acordo com uma pesquisa da Belta (Associação das Agências de Intercâmbio). E os cursos de idioma são os mais procurados, com o inglês tendo sido o principal foco dos entrevistados naquele ano. Para quem tem o mercado europeu como foco, a melhor opção é a Irlanda, que é o quinto país mais popular entre intercambistas brasileiros.

O Olhar Digital inclusive publicou uma reportagem recentemente contando como o país se tornou uma espécie de ímã de empresas de tecnologia. “Quais países hoje da União Europeia falam inglês? O Brexit já está aí, então não tem Reino Unido. Sobra Irlanda ou Malta”, ressalta Giansante, ele próprio um ex-intercambista na ilha. Aliás, um fomentador também, já que é fundador e CEO do E-Dublin, maior plataforma voltada a brasileiros na Irlanda — os vídeos presentes neste texto vêm de lá; Giansante toca uma coluna chamada “Trabalhando no exterior”, em que compartilha sua própria experiência e conduz entrevistas com gente que deu certo por aqui.

Mas não é só com inglês que o candidato precisa de preocupar. Segundo Finneran, é importante estudar o mercado e observar pessoas que tenham perfil similar ao seu no país-alvo para entender quais são os tipos de experiência e certificações necessárias para entrar na área. “Saber quais são as habilidades que nós recrutadores estamos buscando para que você possa se aperfeiçoar ou adquirir aquela habilidade”, disse.

Cultive um bom perfil no LinkedIn, porque ele é uma plataforma importantíssima de recrutamento na Europa, e não tenha medo de se arriscar. “Não precisa estar na Europa para se candidatar às vagas”, pontua Virgilio Afonso Jr., da eSailors.

“Se você pegar os casos de brasileiros que se deram bem aqui e são bem sucedidos nas suas profissões, eu acho que um fator que é comum a todos é a cara de pau”, destaca a recrutadora Priscylla Finneran. “E quando eu falo cara de pau, é num sentido de não ter vergonha de se apresentar, de fazer contatos, de pedir oportunidades, de mostrar o que você sabe fazer. Eu acho que a cara de pau, ser sem vergonha, é realmente essencial.”

Colaboração para o Olhar Digital

Redação é colaboração para o olhar digital no Olhar Digital