Uma crônica do fracasso: como o serviço de streaming Quibi fechou em apenas 6 meses

A empresa esperava criar conteúdo original curto, criado para ser consumido no celular, mas tudo que poderia dar errado deu
Renato Santino21/10/2020 23h51, atualizada em 22/10/2020 00h10

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Você talvez nunca tenha ouvido falar em Quibi. Tudo bem, não há vergonha nisso. O serviço de streaming foi lançado há pouquíssimo tempo, disponível há apenas 6 meses e foi um fracasso retumbante. Tão retumbante que, após apenas seis meses a sua estreia, a empresa está em processo de fechamento e a plataforma será aposentada, como informa o Wall Street Journal.

A aposta do Quibi foi ousada. Em um mercado que se mostrava cada vez mais competitivo para plataformas de streaming, com a entrada de nomes como Disney, Warner, além de marcas como Amazon e Netflix, a empresa decidiu apostar pesado em uma ideia clara: conteúdo produzido para o celular.

Para isso, a empresa apostou em formatos de vídeo diferenciados. Em vez de produzir conteúdo horizontal, projetado para ser visto nas TVs, o conteúdo poderia ser consumido tanto na vertical quanto na horizontal, e ficava a critério do usuário definir seu modo de visualização preferido; os vídeos eram editados para os dois formatos, então não há modo “certo”. O material também era produzido fugindo do formato convencional de filmes ou séries, pensados em pílulas de 10 minutos, tornando o consumo ideal para situações como transporte público, filas de atendimento, e outros casos em que uma distração rápida é tudo que o usuário precisa. O próprio nome do serviço indica sua proposta: Quibi vem da contração de “quick bites” ou “mordidas rápidas”.

A empresa estava confiante nesta empreitada. Para o posto de CEO, foi escolhida Meg Whitman, um nome conhecidíssimo na indústria de tecnologia, reconhecida por já ter ocupado por anos o cargo máximo na HP. Seu fundador, Jeffrey Katzenberg, foi por 10 anos o presidente do conselho da Walt Disney e, em sua saída, fundou a DreamWorks.

As apostas foram altas. O Quibi recebeu quase US$ 2 bilhões em investimentos para alavancar seu lançamento e financiar a produção de conteúdo original. Investidores foram atraídos pelos grandes nomes no controle da empresa, que, de fato, atraiu muitas estrelas para suas produções originais, incluindo nomes como Steven Spielberg, Guillermo del Toro, Kevin Hart, Anna Kendrick e Jennifer Lopez. Foram 175 programas originais projetados para o primeiro ano do serviço, com 35 deles descritos como “filmes em capítulos”, 120 reality shows e documentários e o restante era o que a empresa chamada de “Daily Essentials”, com material novo diário com notícias, entretenimento e inspiração.

A realidade veio

Depois de mais de um ano de preparação, os responsáveis pelo Quibi tiveram um choque de realidade. O mais óbvio deles foi a pandemia de Covid-19. O serviço foi lançado no começo de abril, bem no momento em que o mundo inteiro percebeu o risco da doença e começou a se recolher dentro de suas casas.

Não é difícil entender como pessoas presas em casa podem afetar um serviço pensado para o uso em celulares. O app perde o sentido quando todos têm em suas casas à disposição uma televisão para acompanhar o conteúdo com mais conforto, em uma tela grande, sem precisar espremer os olhos para assistir a um vídeo em uma telinha.

Além disso, os criadores do Quibi parecem ter ignorado o tamanho da concorrência que tinham até mesmo para o conteúdo mobile. Entre o anúncio do serviço e ele de fato entrar em funcionamento, o mundo conheceu a febre do TikTok, que passou a tomar boa parte do tempo de tela de mais de 1 bilhão de pessoas no mundo. Além disso, o YouTube, totalmente gratuito, é abundante em conteúdo curto e de qualidade, perfeito para consumo rápido. Fora os serviços de streaming tradicionais, como a Netflix, que também têm aplicativos para celular.

E, por fim, mesmo com grandes nomes atraídos para as produções da plataforma, a empresa não conseguiu emplacar nenhum conteúdo original de sucesso. A pandemia também não ajudou, causando a paralisação de produções originais. Essa situação se refletiu de forma evidente em sua base de assinantes: uma análise da Sensor Tower apontou que, das 910 mil pessoas que assinaram o serviço, a maioria esmagadora cancelou a assinatura antes do fim dos três meses de testes grátis, e apenas 72 mil se mantiveram na plataforma. A Quibi negou os números, afirmando que são incorretos, mas ainda são um indicativo claro de rejeição.

Daí vem o desespero

Percebendo que a ideia não tinha ganhado nenhuma tração com os usuários, a empresa precisou repensar sua estratégia e basicamente partiu para o desespero. Primeiro, Katzenberg tentou vender a companhia, conversando com empresas como Apple, Warner e Facebook. Sem sucesso, a empresa tentou conversar com o Facebook e com a NBCUniversal para vender o conteúdo original da plataforma e tentar recuperar uma parte do investimento.

A empresa também traiu a sua visão original de direcionar conteúdo para celulares e chegou a lançar um aplicativo para Apple TV, Android TV e Kindle Fire TV, o que, na prática, colocou seus vídeos na televisão, indo contra toda a proposta do Quibi. Essa medida foi anunciada no dia 20 de outubro; em 21 de outubro, surgiu a notícia do fim do serviço.

Sem sucesso, a empresa preferiu anunciar a devolução de uma parte da verba aos investidores em vez de buscar uma nova estratégia para tentar atrair novos assinantes. Meg Whitman anunciou em conferência o reembolso de US$ 350 milhões em capital. A decisão foi tomada porque uma nova tática de expansão seria ainda mais custosa e necessitaria de ainda mais investimentos.

Renato Santino é editor(a) no Olhar Digital