Poucas empresas podem dizer que a pandemia da Covid-19 foi um bom momento para seus negócios. A ByteDance, companhia chinesa que desenvolve o aplicativo TikTok, é uma delas. O app viu um surto rápido de popularidade no primeiro semestre de 2020 que o elevou ao patamar de uma das maiores redes sociais do planeta.

De novo, o TikTok não tem nada. Ele já era amplamente popular no Oriente há anos, com presença massiva no gigantesco mercado asiático. No entanto, faltava à empresa o sucesso do outro lado do planeta, para alcançar mercados como Europa, Estados Unidos e a América Latina, e isso foi alcançado ao longo do primeiro semestre. Já são 2 bilhões de downloads acumulados, boa parte deles concentrados em 2020: nos dois trimestres, o app ficou no topo do ranking da consultoria App Annie como o mais baixado do mundo.

Foi a primeira vez que um aplicativo chinês chegou com força ao Ocidente. Também pode ter sido a última. A reação do governo dos Estados Unidos deixa claro que outros apps vindos do outro lado do mundo podem ter dificuldades de se estabelecerem nas Américas, sob risco de uma ação pesada do governo contra sua atuação.

No caso do TikTok, o ultimato de Donald Trump foi claro: ou o app é comprado por uma empresa americana, ou ele será banido do país. Para isso, ele invoca uma legislação da época da Guerra Fria, o International Emergency Economic Powers Act, de 1977. A legislação dá ao poder executivo a possibilidade de declaração de emergência para intervir no comércio internacional e sancionar empresas que julgar uma ameaça aos Estados Unidos.

No entanto, como explica ao Olhar Digital, Fabro Steibel, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio, esse mecanismo jurídico pode ter sido deturpado para se encaixar na situação atual do TikTok. Ele foi pensado para ameaças reais à segurança nacional, o que, no contexto da Guerra Fria, poderia significar ataques militares e até mesmo nucleares. Seu uso para o fim de cibersegurança é uma extensão de significado que pode enfrentar alguma resistência política no poder judiciário e no congresso americano.

O que fica claro é que este momento marca de forma notável uma fragmentação na internet, pensada para ser uma rede de alcance global (WWW é sigla para Rede Mundial, afinal de contas).

Como explica Steibel, a internet, geralmente, não tem limites fronteiriços. Aplicativos, em geral, podem até ser destinados a um público específico, mas raramente são limitados geograficamente, exceto por regulamentações nacionais por temas como pornografia, consumo de bebidas alcoólicas, entre outros. O caso do TikTok cria uma situação de um app que não pode chegar a um público por questão política.

Na raiz do problema, está a questão de como os dados são usados pela China. De fato, o TikTok coleta várias informações delicadas, especialmente quando se considera que boa parte do público é menor de idade. Entre os dados estão geolocalização e o reconhecimento facial dos usuários; se há o entendimento de que essas informações são repassadas ao governo chinês, realmente a questão de soberania nacional dos Estados Unidos faz algum sentido.

No entanto, o TikTok jura que não tem vínculos com o governo chinês, e até hoje não há uma prova de abuso com esses dados que fuja daquilo que outros aplicativos sociais. Os dados que o app coleta são basicamente os mesmos de qualquer outro aplicativo social, como os americanos Facebook e Instagram e os múltiplos apps do também americano Google.

Inclusive, os Estados Unidos têm um retrospecto ruim de respeito à privacidade de usuários internacionais de aplicativos do país. Em 2013, Edward Snowden se arriscou justamente para revelar um esquema de espionagem da Agência Nacional de Segurança do país, a NSA, que se aproveitava do tráfego internacional de dados para interceptar informações de dados de usuários de empresas americanas. Na época, foi revelado até mesmo que a então presidente Dilma Rousseff estava entre as pessoas que tiveram dados interceptados como parte do escândalo.

Da mesma forma, a China tem seus problemas próprios com privacidade, claro, ligados a várias violações em relação a direitos humanos que frequentemente são imputadas ao país. O governo também tem um histórico de impedir que empresas estrangeiras se estabeleçam no território. Google e Facebook são os maiores exemplos de empresas gigantescas que não conseguem penetrar no mercado chinês; em seu lugar, o público utiliza plataformas locais, como o Weibo e o Baidu.

O que se vê, então, mais do que questões tecnológicas, é uma disputa política. É um acirramento de disputas econômicas, que tem se visto em outras esferas, também. A Huawei é outro exemplo: os Estados Unidos acusam a empresa de usar seu equipamento 5G para entregar dados ao governo chinês e têm pressionado outros países, inclusive o Brasil, para impedir que a companhia participe da implementação da infraestrutura de rede necessária para as novas gerações de redes móveis. Um outro efeito da sanção à Huawei é a impossibilidade de usar o Android em seus celulares; no lugar, a companhia foi forçada a desenvolver seu próprio sistema, sem os apps do Google.

Neste caminho, não é difícil imaginar um cenário de escalada de retaliações em que aplicativos ocidentais serão restritos a usuários ocidentais, e apps orientais serão limitados aos orientais, sem capacidade de furar esse bloqueio e criando uma fratura na internet global. Até onde essa disputa pode ir, no entanto? Seria possível escalar até chegar a outros produtos tecnológicos, como hardware? China e Estados Unidos ainda são bastante dependentes entre si. Uma parte enorme do faturamento de companhias do porte de Apple e Tesla vem diretamente da China, da mesma forma que essas empresas se utilizam das linhas de montagem baratas do país para fabricar seus produtos. Uma disputa desse tipo dificilmente seria interessante para as empresas ou para os governos.