‘Robô químico’ agiliza a produção de novas substâncias e medicamentos

Desenvolvida pela IBM, a plataforma 'RXN for Chemistry' usa Inteligência Artificial para indicar se um processo pode dar certo ou não, enquanto um robô cuida das misturas
Renato Mota11/09/2020 21h13, atualizada em 12/09/2020 17h00

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“Os alquimistas estão chegando. Estão chegando os alquimistas

Os alquimistas estão chegando. Estão chegando os alquimistas”

Jorge Ben Jor, “Os alquimistas estão chegando” – A Tábua de Esmeralda (1974)

Quando imaginamos o trabalho de um químico, a imagem que vem à nossa mente não evoluiu muito nas últimas décadas: uma pessoa em um laboratório equipado com recipientes de vidro, de vários formatos, misturando e testando as substâncias até encontrar o que deseja.

“A química hoje não é muito diferente do que era feito há pelo menos 200 anos. A maneira de conduzir os experimentos é baseada na experiência e na intuição. O cientista testa o que acha que pode dar certo e depois do processo tenta entender se aquilo funcionou ou não”, explica Teodoro Laino, pesquisador da IBM Research Europe. Formado em Química Teórica, desde 2008 ele trabalha no departamento de Computação Cognitiva e Soluções Industriais da empresa em Zurique.

Qual é o gargalo para a inovação no setor? De acordo com Laino, quando uma nova molécula precisa ser feita, o químico depende do que foi feito previamente por outras pessoas. “Você tem que fazer uma pesquisa extensa das receitas. Leva, em média, pelo menos 10 anos para descobrir e comercializar um novo material, e que os custos estimados de produção giram em torno de US$ 10 milhões”, conta o pesquisador.

Exemplos não faltam. O nylon começou a ser pesquisado em 1927, mas só apareceu nas escovas de dentes em 1938. A vitamina B12 exigiu 12 anos e o trabalho de uma equipe de mais de 100 pessoas, incluindo alunos de doutorado e pós-doutorado, para sua síntese. Como a tecnologia pode mudar esse processo?

Laino e sua equipe propõem isso reinventando a forma como a química é feita, combinando Inteligência Artificial, tecnologia de nuvem e automação química. “Hoje, com aprendizado de máquina, somos capazes treinar um modelo que contém todo o conhecimento sobre reações químicas feitas por todas os cientistas. E de repente você não precisa fazer mais nenhuma pesquisa, porque essa arquitetura de IA pode prever quais são os passos que você como pessoa, ou um robô, precisa executar para produzir aquela molécula”, conta o pesquisador.

O resultado é “RXN for Chemistry”, uma infraestrutura autônoma para ajudar os químicos não apenas a prever reações químicas, mas também a executar a produção de uma molécula ou substância de qualquer lugar do mundo – até mesmo de casa. O trabalho foi apresentado na revista científica Nature Communications.

“Eles são discretos e silenciosos. Moram bem longe dos homens

Escolhem com carinho a hora e o tempo do seu precioso trabalho”

Jorge Ben Jor, “Os alquimistas estão chegando” – A Tábua de Esmeralda (1974)

Quando o projeto começou a ser pensado, em janeiro de 2019, poucas pessoas tinham ideia do que era um “coronavírus” e que dali a pouco mais de um ano boa parte do mundo estaria presa dentro de casa.

“Em fevereiro, quando as medidas de restrição começaram, demos nosso máximo para concluir o projeto – mesmo com 90% da equipe trabalhando de casa. Não queríamos chegar atrasado com a nossa contribuição”, lembra Laino.

A plataforma “RXN for Chemistry” oferece o que o pesquisador chama de “química como serviço”. Qualquer cientista, de qualquer lugar do mundo, pode acessar o sistema através do seu browser e começar a desenhar uma molécula. A Inteligência Artificial, e seu enorme banco de dados, sugere as etapas necessárias com uma precisão de 90%. Com a receita pronta, o comando é enviado para um robô em um laboratório, que prepara a mistura e anota os resultados. Todo processo é automatizado.

“Durante a pandemia, os químicos não estavam com acesso aos laboratórios. Poucas companhias puderam continuar suas operações na verdade. Podemos ajudar nisso e, na próxima pandemia, teremos pessoas que querem ajudar a encontrar novas drogas e não precisarão esperar semanas para modelar e fazer os primeiros testes”, afirma Laino.

Esse é um uso para o qual a plataforma não foi pensada inicialmente, mas acabou se adaptando dadas as circunstâncias. “Se no fim de março já tivéssemos essa tecnologia, em semanas teríamos um número grande de químicos para serem testados. Tudo isso de casa: só precisa de uma pessoa tomando conta do estoque no laboratório remoto”, completa o pesquisador da IBM.

“São pacientes, assíduos e perseverantes. Executam segundo as regras herméticas

Desde a trituração, a fixação, a destilação e a coagulação”

Jorge Ben Jor, “Os alquimistas estão chegando” – A Tábua de Esmeralda (1974)

A plataforma é totalmente orientada por dados. Uma vez que o algoritmo de aprendizado de máquina adquire exemplos suficientes, ele pode descobrir por si só como “ler” as receitas e extrair as etapas de produção corretas. “Começamos com 9 milhões de receitas e depois de ‘limpar’ (eliminar duplicatas ou processos falhos) ficamos com um pouco mais de 3,5 milhões – o suficiente para o modelo aprender a executar uma grande quantidade de reações químicas”, conta Laino.

Apesar de automatizado, o processo não foi fácil uma vez que não há um formato padrão para a produção dessas receitas. “Quando pessoas estão descrevendo como estão fazendo uma receita química, elas tendem a ser prosaicas e muito descritivas, além do que é cientificamente relevante”, lembra o pesquisador.

IBM/Divulgação

RoboRXN em atividade no laboratório da IBM na Suíca. Imagem: IBM/Divulgação

Um exemplo disso é fruto um comportamento muito humano. Algumas das receitas dos bancos abertos indicavam que, depois da mistura, certo componente deveria descansar “durante a noite”. “Trabalhei em laboratórios muitos anos e sei como é. Você preparou tudo e já são 19h, tudo que quer é voltar para casa, descansar e no outro dia ver o resultado. Descobrimos com a plataforma que muitas desses processos eram concluídos em menos tempo do que as oito ou dez horas do que a receita indicava”.

A equipe da IBM Research Europe criou então uma outra IA, só para ler as receitas e converter numa linguagem que o sistema pudesse entender. De acordo com o pesquisador, “quando nos sentimos seguros o suficiente, programamos o robô. Os passos dos processos não são nada mais do que um programa de computador que você pode automatizar. É trabalho manual, basta traduzir para a linguagem que o robô entenda”.

A construção desse conjunto robusto de dados para procedimentos químicos é coração da tecnologia RoboRXN: “um modelo de IA que, sendo treinado em muitas receitas químicas, aprende as especificidades dos produtos químicos para ser capaz de recomendar a sequência correta de operações para ‘cozinhar’ uma molécula específica”, completa Laino, com tudo rodando na nuvem.

“Trazem consigo, cadinhos, vasos de vidro, potes de louça. Todos bem e iluminados

Evitam qualquer relação com pessoas de temperamento sórdido”

Jorge Ben Jor, “Os alquimistas estão chegando” – A Tábua de Esmeralda (1974)

Por mais bem intencionados que os pesquisadores sejam, a IBM ainda é uma empresa privada que deve satisfação aos seus acionistas. Laino explica que, além de oferecer “química como serviço”, a plataforma é um potencial gerador de propriedade intelectual. “Além disso, temos o interesse de explorar essa tecnologia com jogadores-chave da indústria”.

IBM/Divulgação

Equipe da IBM Research Europe que desenvolveu a plataforma RXN for Chemestry. Teodoro Laino é o do canto direito. Imagem: IBM/Divulgação

Se para sintetizar novas substâncias e materiais você não precise mais montar seu próprio laboratório totalmente equipado, novas oportunidades de negócios e inovação se abrem para o setor. Mas cabe um questionamento: se (ou quando) uma nova descoberta for feita, quem leva os créditos?

“Estamos lidando com esse problema já neste momento. Temos alguns trabalhos em andamento que levantam essa questão. Mas é preciso imaginar que o sistema é só um executor, uma ferramenta que vai ajudar o ser humano na criação. O robô é como um assistente, o cientista está sempre no controle. Porém, não descartamos o reconhecimento à tecnologia – nos próximos meses vamos tentar trazer o primeiro autor de artigo científico que não é humano”, brinca Laino.

Editor(a)

Renato Mota é editor(a) no Olhar Digital