O PL das fake news, aprovado nesta semana pelo Senado, tem gerado muitas reações negativas nas redes sociais. No Twitter, a hashtag #PL2630Nao ficou entre os assuntos mais comentados nesta terça-feira, quando o relatório proposto pelo senador Angelo Coronel foi à votação. Mas, afinal, estamos diante de um projeto, que se for aprovado pela presidência, pode ser um passo em direção à censura nos canais em que milhões de brasileiros se informam na internet? Um provável fim da liberdade de expressão no WhatsApp, no Facebook, no Twitter?
Para responder essas e outras questões preocupantes que traz o PL, o Olhar Digital bateu um papo com especialistas em privacidade Danilo Doneda, advogado e professor no IDP; Ronaldo Lemos, advogado, professor e um dos principais criadores do Marco Civil da Internet; e Raquel Saraiva, advogada e presidenta do IP.rec Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife, e também integrante da Coalizão Direitos na Rede, que reúne organizações da sociedade civil, ativistas e acadêmicos em prol dos direitos à privacidade e a liberdade de expressão na rede.
Projeto de Lei 2630/20 modifica totalmente a forma como usuários se comunicam hoje. Créditos: Reprodução/Wired
Invasão de privacidade, riscos à liberdade de expressão, vigilância, exclusão digital. Quais pontos e por que o PL é polêmico?
Invasão de privacidade
Quanto à obrigação das plataformas de identificar todas as contas de usuários que forem denunciadas por ter desrespeito à lei, Saraiva diz que o artigo é muito vago, no sentido em que ela pode ainda ser instrumentalizada, ou seja, abre possibilidades de usuários sofrerem perseguições por meras denúncias feitas por outros que são contrários à diversidade de opiniões na plataforma, algo muito comum nas redes sociais.
Um segundo problema levantado pela advogada é a possibilidade de um vazamento de dados sensíveis com documentação. “Apesar do Facebook já coletar os dados dos usuários de forma massiva, existe um perigo ainda maior se esses dados sensíveis estiverem acompanhados com a identificação real do usuário, por meio de documentação, além disso, essas informações de identificação ficarão guardadas em banco de dados da plataforma”, diz.
Outro artigo que, de acordo com a advogada, deveria ser suprimido do texto relatado é o artigo 10º, que trata da rastreabilidade em aplicativos de mensagem, como o WhatsApp. “O artigo é um atentado à privacidade, pois toda a cadeia de interação de uma pessoa está disponível, não importando ou diferenciando, por exemplo, de uma compartilhamento de fake news ou compartilhamento de uma denúncia. Qualquer usuário vai ser incluído nessa cadeia. Uma pessoa que repassou o conteúdo vai posteriormente ter que provar a inocência, mesmo não ter realizado qualquer tipo de ação ilícita nos parâmetros da lei”. Ela ainda observa que esse dispositivo viola os princípios da Constituição, pois coloca todos que estão na mesma situação – no ‘pacote’ de compartilhamentos de WhatsApp que viralizou – como se fossem culpados de uma difamação que uma pessoa está sofrendo, por exemplo.
Ela também levanta a questão nebulosa de como a medida vai ser implementada e uma possibilidade de coleta massiva por parte das plataformas para que seja possível identificar quais conteúdos viralizaram de fato para fornecerem o material às autoridades prosseguirem com as investigações, não restringindo, portanto, o que somente a lei permite.
Para Doneda, “na prática, todo o tráfego de mensagem ou conteúdo para o aplicativo de mensagem vai ter que ser guardado por três meses. Só é possível chegar no 100 partindo do 1”.
Vigilância
Segundo a LGPD, a coleta de dados deve ser realizada somente em casos de extrema necessidade e para o funcionamento do serviço, ou seja, ela estabelece o princípio da coleta mínima dos dados necessários para uma finalidade. Entretanto, Saraiva chama atenção ao movimento contrário do artigo 7º à Lei Geral de Proteção de Dados. “Além de ir contra os preceitos constituicionais, isso dá às plataformas o poder de polícia e de desenvolver vigílias para detectar fraudes nesses cadastros de contas”, afirma.
Exclusão digital
Doneda cita o artigo 8º, que traz problemas à inclusão social de acesso à informação, algo que prejudica, consequentemente, a liberdade de expressão. Segundo a redação aprovada, haverá a suspensão de contas de redes sociais dos usuários que tiverem rescindidos seus contratos com a empresa de telefonia. “Em outras palavras: pobre no Brasil não vai poder ter rede social ou aquele que teve o contrato rescindido por algum motivo. É tirado de tais pessoas uma cesta básica de acesso à informação, interação e até mesmo de trabalho. Nessa paranoia de encontrar todas as pessoas, com uma única canetada o que se tem é uma medida de exclusão, e isso não encontra acolhimento constitucional”, explica.
Liberdade de expressão ameaçada e censura à vista
Na opinião de Saraiva, o PL chega a censurar na medida em que as pessoas não vão conseguir se expressar, havendo uma ameaça clara aos debates públicos políticos em ambientes como o Twitter, pois a qualquer momento a conta poderá ser denunciada e o usuário terá que se identificar. O mesmo se aplica em interações pelo WhatsApp. “Fica projudicada qualquer discussão que se tenha com alguém na plataforma, pois poderá haver uma rastreabilidade da conversa depois. É possível que isso aconteça, ainda não se sabe”, diz.
Ela acredita que ao ferir a liberdade de expressão, as pessoas não se sintam livres para se expressar, fazendo com que a autocensura se estabeleça. Além disso, observa que 90% do uso da internet se dá no interior dessas plataformas, desta forma, espera-se que haja uma mudança radical como interagimos com ela, com grupos, com outras pessoas.
Caso sancionado, qual seria o impacto em uma lei como o Marco Civil da Internet?
De acordo com Lemos, se o PL 2.630/20 for sancionado como está, deverá alterar o Marco Civil da Internet, rompendo um modelo que foi construído ao longo de mais de sete anos. “Em vez de fazer isso, o projeto deveria focar na coibição às redes organizadas e bem financiadas de propagação desinformação. Em outras palavras, deveria modificar a lei de organizações criminosas para incluir esse tipo de atividade e criar um tipo penal para que financia e dissemina de forma oculta e estruturada campanhas, subvertendo o uso regular das plataformas”, comenta.
A tecnologia poderia ajudar a conter o avanço desenfreado das fake news?
Também doutoranda em Ciências da Computação, Saraiva comenta que existe, antes de tudo, problemas relacionados ao conceito da expressão, o que dificulta o trabalho da tecnologia para ajudar a minimizar o avanço das fake news na internet. “Não se sabe direito o que é fake news, e para mim, um texto de lei precisa estar baseado em evidências científicas, e por esse motivo, apesar da primeira versão ter colocado o conceito ligado à ‘desinformação’ – em termos acadêmicos – isso não existe, não há um consenso sobre o sentido de desinformação, portanto, não há um consenso de conceito sobre fake news”, diz.
A tecnologia poderia ser uma aliada no trabalho de detecção de fake news, mas há outros problemas anteriores à implementação. Créditos: iStock
Em uma das redações do PL, ela conta que ao tentar atribuir ‘fake news’ como “algo retirado de contexto” se comete outra falha, pois uma porção de situações podem ser retiradas de contexto. O equívoco permanece no substitutivo, portanto, sob o ponto de vista tecnológico, essa seria uma dificuldade extra para se elaborar uma ferramenta com intuito de detectar o conteúdo falso e removê-lo automaticamente. “A dificuldade que vejo não são das fake news escancaradas ou já estabelecidas pela maioria, por exemplo. Ela reside nas nuances – detalhes mais difíceis de detectar. É dificil treinar um algoritmo e isso se soma ainda a mais um obstáculo, que é o da definição”, explica Saraiva.
Ela conta que há movimentos no campo da tecnologia já utilizando inteligência artificial para fazer detecção e remoções automáticas de fake news, mas ela esbarra no problema de sentido da palavra. “Sabemos que temos o problema de conceito, que pode ser resolvido com um trabalho interdisciplinar. Por natureza, essa conceituação caberia aos linguistas, jornalistas e aos demais profissionais de comunicação, que serão mais capazes de trazer um conceito mais robusto e aceito pela comunidade, para depois ser aplicado a uma ferramenta tecnológica. É preciso muita clareza primeiro para depois submeter esse trabalho a uma ferramenta tecnológica, pois julgar uma fake news envolve muito mais de interpretação e de contextualizaçao do que uma situação clara de assinalar verdadeiro ou falso”, finaliza.