Estou no vôo para Londres, a caminho da mais importante conferência mundial sobre Legal Design , uma nova disciplina na área do direito que procura entender como resolver problemas jurídicos a partir da ótica da pessoa ou empresa que será o destinatário da solução.
A ideia é baseada em técnicas como o design thinking, que busca na persona e na observação de suas experiência, atividades e desafios o caminho e as ferramentas necessárias para cada tarefa. Assim, procura primeiro trazer esse destinatário para auxiliar nessa missão, até porque é o principal interessado, para depois entender as ferramentas adequadas para as atividades e o design, a funcionalidade, o workflow necessário para novas maneiras de pensar e resolver conflitos e sua repercussão jurídica.
No que diz respeito ao uso das novas tecnologias no dia a dia da sociedade, da famosa inteligência artificial, além das facilidades dos aplicativos, surgem uma enormidade de novos conflitos, e são muitos reflexos do uso dessas inovações nas várias áreas do Direito (responsabilidade civil do carro autônomo, crimes cibernéticos, uso de dados de funcionários para questões relacionadas ao direito do trabalho, entre muitas outras).
Ao mesmo tempo, também temos à disposição, além desse conhecimento jurídico, ferramentas de última geração para aprimorar a prestação de serviços nessa área, como plataformas de acordo online, automação de sistemas e documentos, análise de jurisprudência utilizando técnicas de computação cognitiva. Mas essa nova metodologia nos ensina a entender primeiro qual a regra jurídica, qual a ferramenta e a receita ideal para resolver cada situação, ainda mais pelas características do ambiente digital. Vai sempre depender da peculiaridade de cada caso, e é por isso que a primeira fase é sempre entender o problema para lançar mão do conhecimento técnico e da inovação que se encaixa melhor para aquele propósito.
E, após o protótipo idealizado e testado, esse conceito de Legal Design se preocupa, na última fase, com a forma de entregar aquela ideia. Pois no mundo moderno todo mundo quer receber a informação de acordo com a sua preferencia e com a linguagem adequada para o seu entendimento – alguns preferem vídeos, outros imagens, outros textos mais complexos.
E em alguns laboratórios, como o Legal Design Lab de Stanford (EUA), existem pesquisas muito avançadas para criar, por exemplo, contratos baseados em inforgráficos e até, acreditem, em histórias em quadrinhos. Inclusive porque, as partes desses contratos na maioria das vezes não são advogados e não entendem o “juridiquês” e, apesar disso, são eles que terão que cumprir o que está ali definido entre os participantes daquela combinação.
Mas o que tudo isso tem a ver com os aplicativos de celular e nossa personalidade?
A digitalização de tudo (digitization) está impulsionando ambientes que produzem dados sem parar, e nem conseguimos mais entender a unidade de medida correta para o que geramos a cada minuto com a utilização dos mais diversos aplicativos. E a diminuição do custo de captura, armazenamento e processamento de quantidades gigantescas de bytes (big data), com técnicas para organização e análise dessas informações até agora despadronizadas e desorganizadas, estão transformando todo o modelo de produção de bens e serviços em todos os setores.
Está em plena expansão no mundo o movimento data-driven, de organizações orientadas por dados que, de forma integrada com o conhecimento dos profissionais de cada área, procuram gerar insights e auxiliar na criação de produtos, na melhoria da experiência de consumo de seus clientes, na rapidez e a assertividade das respostas, e melhorar o resultado da operação.
E nesse cenário, um dos mais complexos problemas atuais é a proteção de dados pessoais, porque está mais do que dito que o combustível dessa revolução não são apenas nossas tendências de consumo, mas nossas preferências, nossos hábitos, nossas interações.
Na área do marketing, onde tudo isso começou, todos já sabemos que uma pesquisa sobre uma viagem como essa que estou fazendo gera milhares de propagandas sobre hotéis e vôos por onde quer que a gente navegue na internet.
Mais que isso, ao contratar o seguro, sabem que fui viajar. Ao pedir para liberar o cartão de crédito, sabem para qual país vou, quantos dias, e tudo o que comprei. Minhas pesquisas na internet dizem sobre os assuntos que vou estudar, as pessoas com as quais vou me conectar e acrescentar na minha rede professional, os meus posts vão deixar o rastro das minhas impressões, e assim por diante. Tudo o que estou fazendo, desde sair de casa até o meu retorno, está gravado em todos os aplicativos e nos serviços que utilizei e vou utilizar.
Então o problema jurídico que estamos discutindo é a proteção dos dados pessoais e como os aplicativos estão explorando nossa personalidade. E a persona destinatária dessa solução, portanto, é a sociedade. Ou seja, somos todos nós.
Mesmo sendo um entusiasta do uso de dados para a tomada de decisão, e tendo participado nos últimos anos de projetos muito especiais que se utilizam do que existe de mais moderno na computação cognitiva para ler milhares de dados de processos, para trazer evidências científicas sobre a jurisprudência de determinado caso, sobre como otimizar os serviços jurídicos para garantir o acesso a justiça… ainda fico refletindo o tempo todo, matutando sobre quais os limites dessa utilização nas mais diversas áreas do conhecimento.
Vazamentos de dados expõem nossa individualidade semanalmente, como nos 26 milhões de usuários do facebook que recentemente tiveram informações sensíveis compartilhadas por hackers. Transferências de dados entre fornecedores de serviços devastam nossos hábitos, como na nova ferramenta de GPS questionada pelo Ministério Público do Distrito Federal que, segundo noticiado, supostamente rastreia 60 milhões de celulares e se utiliza de aplicativos – buscapé, Galinha Pintadinha, entre outros – para cruzar nossos movimentos e aumentar a precisão da nossa localização para até 2 metros, de maneira que é capaz de entregar em nosso celular a propaganda de uma loja no exato momento em que estamos passando na sua frente. Aplicativos de corrida podem dizer para o seguro de saúde se somos sedentários e afinar a análise do risco e custo da apólice.
E a pergunta que nos fazemos é se qualquer aplicativo pode realmente saber tudo sobre nós? Pode monitorar nossa geolocalização, o que estamos pesquisando, e ainda transferir essas informações para seus parceiros comerciais?
Essa resposta não é simples, e estamos em um momento em que tudo isso está acontecendo, que essas questões estão sendo discutidas globalmente. E uma regulação equivocada pode inibir o processo de inovação, e isso também não seria adequado. Mas qual o ponto de equilíbrio?
Volto a dizer que sou entusiasta do uso da tecnologia e vivo esse ambiente data-driven diariamente em minhas atividades profissionais.
Mas a minha perplexidade e reflexão, e imagino que a sua também, são sobre qual o limite legal e ético desse uso, na forma correta de consentimento e de publicidade sobre como os dados estão sendo utilizados, sobre como vamos equilibrar os benefícios de toda essa tecnologia e preservar a essência do ser humano, os seus segredos mais íntimos, sua individualidade, a diversidade de seu pensamento, sobre como faremos para antecipar problemas e evitar essas situações indesejadas.
Como consequência do que estamos discutindo e pelo aumento considerável de conflitos, começam a surgir novas leis para tentar aprimorar a regulação dessa temática.
A Europa vem liderando esse movimento, especialmente após modernizar sua legislação sobre proteção de dados pessoais (originalmente criada em 95), e que desde maio de 2018 se transformou na GDPR – General Data Protection Regulation. Essa legislação trouxe o conceito de uma agência especializada para fiscalizar e coibir abusos e ilegalidades (DPA – Data Protection Agency), consolidou novos direitos como a possibilidade de pedir para apagar todos os seus dados de um aplicativo que não utiliza mais, de saber como um algoritmo decidiu algum assunto que te afeta direta ou indiretamente (como no caso da concessão de crédito, p.ex.), além de criar novos institutos como privacy by design, privacy by default, entre muitos outros.
Nos Estados Unidos, apesar de um ambiente mais liberal em relação a uso e transfência de dados, também existe uma preocupação grande nesse sentido. E o Brasil, seguindo essa tendência mundial, acaba de aprovar sua Lei Geral de Proteção de Dados em 14 de agosto de 2018, que entra em vigor 18 meses após sua publicação.
Pela importância do tema nas dinâmicas sociais e nas nossas atividades cotidianas, bem como em função de como essa nova legislação vai afetar as tarefas profissionais, esses pontos acima são apenas provocações iniciais para discutirmos nessa coluna a proteção de dados pessoais e o avanço da tecnologia, a regulação existente, os benefícios e problemas causados por essa utilização.
Até porque muitos ainda acham que esse tipo de lei só se aplica às empresas de tecnologia. Mas os colégios tem dados pessoais, os hospitais, as academias de ginástica tem as digitais dos clientes e podem dizer muito sobre sua saúde, de maneira que a vigência dessa legislação em nosso país trará, por um lado, essa proteção e novos direitos mas, por outro, uma série de obrigações e conformidades para os mais diversos setores da economia. E o tempo passa rápido.
A ideia é colocar o problema e suas diferentes nuances, em uma linguagem adequada para daqueles que não são necessariamente da área do direito, para dar um mapa da situação e te trazer próximo para discutir ao longo das proximas publicações os pontos mais importantes.
Afinal de contas, nossos aplicativos já sabem de tudo sobre nós e, sem dúvida, somos nós os destinatários das soluções para esses novos problemas jurídicos e sociais.
Estamos só no começo de uma grande revolução cultural e só o futuro poderá nos dizer se ainda existirá privacidade. E não adianta esperar do poder público todas as respostas, precisamos participar ativamente dessa agenda de transformação.