Desde o ano passado, um robô tem sido treinado para identificar potenciais casos de corrupção dentro da Câmara dos Deputados em Brasília. Trata-se de Rosie, uma máquina desenvolvida por um grupo interdisciplinar de várias partes do Brasil na chamada “Operação Serenata de Amor”.
A história toda começou em setembro de 2016. Um grupo de jovens colocou na plataforma de fianciamento coletivo Catarse a proposta de criação da Operação Serenata de Amor. O objetivo é usar inteligência artificial e ciência de dados para encontrar, dentro dos milhares de dados desorganizados oferecidos pelo governo, sinais de “pequenas corrupções” no dia a dia dos políticos.
O foco dessa investigação é a Cota para Exercício da Atividade Parlamentar (CEAP), um benefício, concedido a todo deputado federal, no valor de R$ 44 mil mensais. Esse montante é reservado para que o parlamentar possa gastar em suas atividades cotidianas, como passagens de avião, alimentação e combustível, despesas que a Câmara considera “típicas do exercício do mandato”.
Nem tudo é liberado, porém. O regulamento da CEAP proíbe o uso dessa verba em compras feitas de empresas que pertencem ao próprio deputado ou parentes. O parlamentar também não pode transferir esse benefício a terceiros, cobrindo compras feitas por amigos ou entes próximos, assim como é proibido o uso da cota para atividades eleitorais.
Os deputados podem gastar quanto quiser em qualquer outra atividade e, ao fim do mês, enviam as notas fiscais à Câmara e pedem um reembolso – desde que o valor total gasto não supere os R$ 44 mil da CEAP. Se cada parlamentar gastar sua cota máxima todo mês, ao final de um ano terão saído quase R$ 130 milhões dos cofres públicos para cobrir esse tipo de despesa. Mais da metade dos parlamentares usam a cota máxima.
A ideia desses programadores e empreendedores por trás da Operação Serenata de Amor é descobrir o quanto desse dinheiro todo é justificado ou não passa de puro mal uso do dinheiro público. Todas as informações sobre o quanto cada parlamentar gasta com a CEAP estão disponíveis publicamente no Portal da Transparência, ao alcance de qualquer um. E é nesse ponto que entra a inteligência artificial.
“É como você ter uma mesa com dois milhões de papeis empilhados e tentar encontrar alguma irregularidade. É um trabalho impossível para um ser humano”, conta Pedro Vilanova, supervisor de comunicação da Operação Serenata de Amor, em entrevista ao Olhar Digital. Rosie, como o grupo apelidou o robô criado, é um sistema que analisa os dados disponíveis no Portal da Transparência e procura por irregularidades com a rapidez que um auditor humano é incapaz de fazer.
Basicamente, Rosie cruza informações de diferentes bancos de dados e tenta encontrar inconsistências nos pedidos de reembolsos dos deputados. A máquina já detectou casos em que um único parlamentar pediu reembolso de R$ 170 num restaurante em que o quilo custa R$ 14 (são quase 12 quilos de comida); em outra situação, um deputado quis pagar com dinheiro da CEAP um almoço feito em São Paulo apenas 30 minutos de ter sido visto discursando em Brasília.
Ou seja, há indícios de que alguns parlamentares usam dinheiro público para custear mais do que o necessário. “A carreira de um político corrupto não inicia com o roubo de milhões. Ela começa nos pequenos atos. Quando o corrupto tem sucesso nesses atos menores, o sentimento de impunidade vai crescendo e o corrupto tende a assumir riscos maiores”, declara o grupo na página da campanha no Catarse.
O nome da operação, “Serenata de Amor”, é uma referência ao que foi chamado de “caso Toblerone”. Aconteceu em 1990, na Suécia, quando a então vice-primeira ministra, Mona Sahlin, acabou perdendo o cargo por ter comprado uma barra de chocolates usando o cartão corporativo do governo. A compra de um chocolate com dinheiro público ficou conhecida como o último grande escândalo de corrupção da Suécia. Já “Rosie” é uma referência à robô faxineira do desenho animado “Os Jetsons”.
Vilanova conta que a primeira etapa da operação consistiu em ensinar Rosie a identificar potenciais irregularidades, usando um método de programação chamado “machine learning”. A grosso modo, o sistema é treinado para cruzar informações como o CNPJ onde uma nota fiscal foi emitida, o horário registrado, a ata de presença do deputado em sessão e outros dados disponibilizados pelo governo
Após ter sido “ensinado” sobre o que é errado e o que não é, o robô passa a detectar sozinho quando a probabilidade de um parlamentar estar pedindo um reembolso desnecessário for alta. Quando Rosie consegue identificar uma possível irregularidade, os auditores humanos analisam o caso e entram com uma denúncia no Ministério Público ou no site da Câmara pedindo para que o tal reembolso seja cancelado.
Quando a Câmara recebe a denúncia, cobra uma explicação do deputado acusado. De acordo com Vilanova, a maioria dos deputados simplesmente aceita que gastou mais do que devia e devolve o dinheiro. Em alguns casos, porém, o parlamentar tenta justificar o uso da cota, e cabe à Câmara determinar se o benefício vale nesse caso ou não.
Todo o código do robô Rosie está disponível publicamente no GitHub para quem quiser acessar, sugerir modificações ou apenas reproduzir em casa. Na semana passada, a operação fez um “mutirão de denúncias” que indicou ao Ministério Público e à Câmara 629 casos suspeitos de abuso da CEAP. Isso se traduz em mais de R$ 378 mil potencialmente gastos de forma irregular pelos deputados.
Nessa fase do trabalho, como explica Vilanova, a operação está focada apenas em gastos com refeições, mas muito mais pode ser investigado, incluindo passagens de avião e gastos com combustíveis. “Todo mês entram 30 mil novas notas no sistema da Câmara. O uso da ciência de dados e da inteligência artificial é de dar uma maior escala para o trabalho, que seria impossível ser escalonado por humanos”, diz Vilanova.
Talvez ainda mais importante do que isso, explica o porta-voz do grupo, está no fato de que um robô não pode ser influenciado por posições políticas. “Nós precisamos ter uma consciência disso, porque o robô é feito por humanos, e nenhum de nós é imparcial. Mas é por isso que temos oito pessoas no time, de diferentes partes do Brasil, por isso que o código é aberto: para que a gente possa minimizar ao máximo a parcialidade.”
“Não pedimos para a Rosie agrupar dados sobre deputados, partidos, unidades da federação ou região administrativa. O robô só agrupa as notas e a probabilidade daquela nota ser suspeita, independentemente de quem pediu o reembolso”, diz ainda Vilanova, acrescentando que, de uma certa maneira, “o robô é incorruptível”.
O valor coletado pela campanha de financiamento coletivo chega ao fim neste mês. A Operação Serenata de Amor pretende continuar investigando a corrupção no Congresso, mas estuda outras formas de arrecadar recursos para isso. Por enquanto, é possível apoiar o projeto contribuindo na plataforma Apoia.se. Clique aqui para saber como.