A verdadeira ameaça para a realização e a felicidade dos seres humanos não são os robôs, e sim a possibilidade, cada vez mais próxima, de que nos transformemos em algo parecido com eles.

O avanço tecnológico está fazendo de nós máquinas super produtivas, capazes de resolver qualquer enigma. A tecnologia vem eliminado incertezas e mistérios. Porém, sem mistérios não há descobertas, e sem descobrimentos não há emoções.

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Passamos a conviver e interagir o tempo todo com equipamentos que substituem quase tudo o que antes nos ocupava e emocionava. Temo que isso acabará provocando um atrofiamento de nossa capacidade de sentir, de vibrar, de se emocionar.

Daqui a poucos anos, é bem possível que você acorde de manhã, entre na máquina de toilette, saia barbeado e pronto em minutos. Então, embarcará no carro e tomará um café sem graça enquanto o veículo – sem motorista – te levará ao trabalho. No almoço, engolirá porções de ração 100% nutritiva. Passará o dia em contato com máquinas responsivas e eficientes. Ao final dele, talvez não tenha vontade de voltar para casa, onde tudo estará pronto e você poderá escolher entre fazer sexo com (outra) máquina ou com uma pessoa desconhecida que a inteligência artificial do seu celular já escolheu por você.

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Provavelmente você dirá que a superação estará no desafio de desenvolver mais e mais tecnologia, de programar máquinas ou mesmo de hackear sistemas. Mas será que isso terá mesmo graça? Fico aqui pensando sobre o que preencherá o coração e a mente de uma pessoa sozinha em um ambiente assim. Um animal de estimação, talvez. O que explicaria o recente aumento da população deles no mundo.

Em 1973, com 15 para 16 anos, fui com um grupo de amigos surfar no Peru. Ficamos lá por mais de trinta dias e, como era difícil telefonar das cidadezinhas onde nos hospedamos, liguei para casa poucas vezes durante esse período. Uma vez superadas as barreiras da telefonista e a espera, que às vezes chegava a 40 minutos, lembro-me como se fosse hoje da explosão de alegria quando eu ouvia a voz dos meus pais e eles a minha.

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Uma década depois, passei três anos a trabalho em Milão, e as cartas ganharam protagonismo no campo das emoções. Cartas da namorada, dos amigos e dos pais. Chegar em casa à noite e abrir a caixa postal dourada que ficava na portaria do prédio era uma das mais valiosas sensações do dia. E quando havia algo lá dentro, nossa, que festa!

As novas gerações já não conhecem nada disso. Mesmo nas situações mais corriqueiras, como dirigir; os carros autônomos prometem riscar do mapa a empolgação e o prazer de guiar.

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Somos todos movidos a desafios. A humanidade não chegou aonde chegou por acaso. Dominamos o planeta e nos sobrepusemos a todos os outros seres vivos por nossa capacidade de superação. Graças a ela, avançamos; a qualidade de vida e a média do PIB per capita evoluiu exponencialmente nos últimos 200 anos.

Tudo está mais fácil, mais acessível. Com isso, as emoções da vitória dificilmente terão a mesma intensidade do passado. Se tudo está à mão, é bem possível que vivenciemos um desbotamento do que é aventura, paixão e conquista.

A palavra conquista vem do latim conquaerere, que significa “ganhar, obter por um esforço, procurar por”. Pelo excesso de comodidades, talvez as novas gerações se vejam privadas de exercer conquistas. Talvez jamais conheçam o sobressalto de corações batendo forte e as dores da paixão. Vivem um mundo no qual até mesmo as escolhas são feitas por aplicativos que indicam o melhor caminho a fazer, a que horas sair de casa, em que restaurante jantar. No qual basta conectar-se com alguém na internet e, se ambos desejarem, iniciar um relacionamento, muitas vezes chegando à máxima intimidade física já no primeiro encontro presencial.

Há pouquíssimo tempo, 30 anos talvez, seduzíamos com presentes, bilhetes. Rodeávamos, rodeávamos e algumas poucas vezes as coisas avançavam para uma amizade, que, por sua vez, poderia ou não evoluir para um relacionamento. Era difícil. Muito difícil. Mas cada passo da conquista trazia um turbilhão de emoções. Um olhar mais direto ou um aperto de mão mais demorado era suficiente para acionar todos os ruidosos e intensos motores dentro de nós.

No campo da sexualidade, para nós, meninos, ver um seio descoberto em um filme era suficiente para nos deixar perturbados por semanas a fio. Como será que é a emoção dessa meninada hoje em dia que tem tudo, absolutamente tudo, disponível no celular?

Em um contexto desses, como faríamos para satisfazer o instinto natural e humano de superação? Talvez o que passe a atrair e desafiar ao mesmo tempo seja justamente o proibido. A busca da adrenalina no vedado poderia levar, quem sabe, a um aumento do assédio nos ambientes de trabalho. Para ficar só em um exemplo.

Temo que, movidas pelo instinto de busca de desafios, as pessoas iriam em busca de algo que não estivesse à mão. E, ao tentar alcançar o imprevisível, no mundo do tudo acessível, fácil e permitido, talvez sejam levadas, naturalmente, a erros e transgressões mais graves. Será?