Por que os estudos divulgados até agora não permitem conclusões sobre a cloroquina

Pesquisas que vieram a público não seguem padrões científicos, o que impede saber se ela funciona ou não contra o coronavírus
Renato Santino23/04/2020 01h33, atualizada em 23/04/2020 09h00

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Desde a metade de março, pesquisadores do mundo inteiro voltam sua atenção para a cloroquina e sua variante menos tóxica, a hidroxicloroquina. O medicamento, usado para artrite reumatoide, lúpus e malária, foi alçado ao patamar de potencial remédio para a Covid-19 após um estudo publicado na França.

No entanto, ao longo deste período, cientistas ainda não foram capazes de alcançar uma resposta conclusiva. Vários estudos clínicos já foram realizados e tiveram seus resultados abertos publicamente, mas eles normalmente têm uma característica em comum: a falta de rigor científico que permitam atestar um resultado claro.

O teste de eficácia de uma droga idealmente passaria por um cuidado classificado como “padrão-ouro”. Trata-se de uma série de práticas que permitem eliminar possíveis vieses e coincidências no processo, permitindo resultados mais puros e confiáveis.

Para alcançar este patamar, a pesquisa deve ter uma base amostral grande, seguindo critérios estatísticos. No caso da cloroquina, isso significaria ter um número alto de pacientes de Covid-19, na casa das várias centenas ou até milhares. Com essa base estatística, é menos provável que as pessoas analisadas apenas tenham uma saúde melhor ou pior, que podem afetar os resultados.

Também é preciso dividir esses pacientes em dois grupos, de forma aleatória: as pessoas no primeiro grupo recebem o medicamento para analisar seus resultados, enquanto as do segundo recebem um placebo que não deve ter qualquer eficácia. Essa prática oferece uma base de comparação que permite saber com clareza o que realmente tem efeito, descartando potenciais efeitos psicossomáticos.

Por fim, é importante que nem o paciente, nem o médico saibam quem está em qual grupo. Isso é chamado de duplo-cego: desta forma, todos os pacientes são tratados de forma igual, descartando potenciais distorção nos resultados como fruto de algum tratamento diferenciado.

As pesquisas que temos não seguem essas regras

A empresa de saúde Prevent Senior se notabilizou nas últimas semanas com seu estudo sobre a hidroxicloroquina, visando entender se o medicamento é eficaz em um momento inicial da doença, antes de os pacientes desenvolverem sintomas mais graves. A pesquisava procurava entender se a droga poderia evitar a hospitalização de pacientes, em vez de servir para antecipar sua alta.

Os resultados mostraram um cenário favorável para o medicamento. Os pacientes tratados com a droga foram hospitalizados em apenas 1,9% dos casos, enquanto o grupo que não recebeu o remédio precisou de internação em 5,4%. No entanto, o estudo logo foi criticado amplamente pela falta de rigor científico. O ponto mais criticado foi que, como o pré-atendimento foi todo feito pela internet, não houve teste para saber se os pacientes realmente estavam infectados pelo coronavírus. A seleção dos voluntários baseou-se apenas nos sintomas, mas sem um diagnóstico concreto de Covid-19.

Da mesma forma, a divisão entre os grupos não foi aleatória, nem respeitou o duplo-cego. Os pacientes eram questionados se gostariam ou não de tomar o remédio, e suas respostas eram o único elemento que determinava se iam para o grupo de controle, que não receberia o medicamento, ou se seriam tratados com a droga. Posteriormente, a pesquisa seria cancelada por questões éticas.

Mas não é só no Brasil, nem só os estudos com resultados favoráveis à cloroquina que podem ser questionados em sua metodologia. Nesta semana, pesquisadores dos Estados Unidos publicaram um outro estudo apontando a ineficácia da hidroxicloroquina para lidar com a Covid-19, mas também há críticas sobre o rigor científico do experimento.

Foram 368 pacientes analisados no estudo divulgado nesta semana, mas que não foi revisado por outros cientistas antes da publicação. Eles foram divididos em três grupos: um recebeu a hidroxicloroquina, outro recebeu o medicamento em conjunto com o antibiótico azitromicina, e o terceiro foi tratado sem nenhum dos dois. O estudo concluiu que 28% dos que pertenciam ao primeiro grupo e 22% do segundo acabaram falecendo, enquanto apenas 11% dos que receberam um tratamento convencional morreram. Também não foi percebida alteração na necessidade de uso de um ventilador mecânico.

Neste caso, os próprios pesquisadores admitem que a pesquisa não é conclusiva, apontando para a necessidade de estudos mais amplos e randomizados, seguindo o padrão-ouro. “Os resultados destacam a importância de aguardar os resultados de estudos prospectivos randomizados e controlados antes da adoção generalizada dessas drogas”, diz a conclusão.

Enquanto isso, no Amazonas, a Fiocruz divulgou resultados preliminares de um estudo realizado com apenas 81 pacientes, o que é uma base estatística muito pequena para qualquer conclusão. Inicialmente, no entanto, eram esperados testes com 440 pessoas. Eles foram divididos em dois grupos que receberam diferentes dosagens de cloroquina: um tomou 600 miligramas duas vezes ao dia por 10 dias (12 gramas), e outro recebeu 450 miligramas duas vezes ao dia por 5 dias (4,5 gramas). Os que receberam a dosagem mais alta tiveram efeitos colaterais mais graves e 11 pessoas morreram, fazendo com que o estudo fosse interrompido.

Além da pequena base de pacientes analisada, o estudo da Fiocruz também tem contra si a ausência de um grupo de controle, que não permite comparar os resultados da cloroquina contra quem não recebeu o medicamento.

Os estudos que não seguem o padrão-ouro podem trazer um direcionamento e pistas sobre o que funciona e o que não funciona, mas eles não são conclusivos. Apenas quando houver um estudo controlado, com uma base de pacientes ampla e dividida de forma aleatória, publicado em forma de um artigo científico que possa ser revisado e avalizado por outros cientistas será possível afirmar que o medicamento é ou não eficaz.

Não é só com a cloroquina

A cloroquina não é o único medicamento em testes para o tratamento da Covid-19. Recentemente, foi divulgado o resultado preliminar de testes realizados em Chicago com o remdesivir, uma droga antiviral usada no combate a doenças como a Mers (“irmã” da Covid-19) e o Ebola. Os números foram animadores, mas eles também não podem ser considerados conclusivos.

Os resultados foram “vazados” a partir de um vídeo de uma reunião interna e, apesar de promissores, não foram formalmente publicados em um artigo científico, como é o caminho convencional. De acordo com o que se sabe, foram 125 pacientes tratados com o medicamento, e a maioria foi dispensada após uma semana de tratamento.

No entanto, a pesquisadora que lidera o estudo reforçou que era difícil analisar o resultado sem um grupo de controle que não tenha recebido o medicamento para comparar a eficácia. Além disso, a Universidade de Medicina de Chicago e a Gilead Sciences, fabricante do medicamento, ressaltaram que os resultados não eram conclusivos.

Renato Santino é editor(a) no Olhar Digital