Passo a passo: entenda como a Nova Zelândia venceu o coronavírus

País não tem mais nenhum caso ativo de Covid-19 e cidadãos já podem retomar vida normal, com direito até mesmo a aglomerações
Renato Santino09/06/2020 23h48

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A erradicação do coronavírus para a maioria dos países é um sonho distante. Para a Nova Zelândia, é uma realidade. O pequeno país na Oceania conseguiu eliminar todos os tipos de restrições sobre a população, permitindo deslocamento interno livre, sem qualquer tipo de impedimento sobre aglomerações, sem necessidade de máscaras. Estádios de rúgbi, o esporte nacional dos neozelandeses, podem novamente ficar cheios para acompanhar os campeonatos sem preocupação.

Muito se tem dito sobre a pequena extensão do país e a pequena população como explicação para o sucesso da Nova Zelândia contra a Covid-19, mas apenas esses dados não contam toda a história. Existem estados brasileiros maiores e com menos habitantes que sofrem com crises muito mais graves e sem solução à vista no curto prazo.

Por exemplo: estados como Amazonas e Pará contam com um território muito maior do que o da Nova Zelândia e uma densidade populacional muito mais baixa (Pará: 6,07 habitantes/km², Amazonas: 2,23 habitantes/km², Nova Zelândia: 18,3 habitantes/km²), representando uma população muito mais dispersa, que dificultaria a propagação do vírus. E ainda assim, o país inteiro conta com números melhores destes estados brasileiros: o Pará já chegou a 3.772 mortes, enquanto o Amazonas concentra 2.271 óbitos. Já o Tocantins é o estado brasileiro com extensão territorial mais próxima da Nova Zelândia, contando com uma densidade demográfica mais baixa de 5 habitantes/km². Ainda assim, o número de casos já passou dos 5.000, e as mortes já chegaram ao patamar dos 100 em uma curva ascendente.

A Nova Zelândia, por sua vez, não chegou estancou a crise com 1.504 casos confirmados e as mortes foram limitadas a 22. Isso mostra que há outros fatores em ação para determinar esse sucesso. É o que vamos ver agora.

Fechar cedo

A geografia não explica totalmente o sucesso da Nova Zelândia, mas em alguns pontos ajuda a entender, sim. O fato de ser uma ilha faz com que seja muito difícil entrar em seu território sem ser percebido, tornando o veto a viajantes de fora consideravelmente mais potente.

Essa vantagem, no entanto, se perderia se o governo tivesse demorado para fechar suas portas para quem vinha de fora. O primeiro caso registrado no país data de 28 de fevereiro (depois do Brasil, portanto), de um paciente que voltou do Irã, um dos países mais afetados na fase inicial da propagação internacional da Covid-19.

Aos poucos, o país passou a registrar mais casos, até chegar à primeira morte, no dia 29 de março. Nesta mesma época, o país já havia definido que precisava agir com firmeza para conter o vírus em sua etapa inicial para evitar sua propagação. A essa altura, o país já estava em “lockdown”, implementando em 25 de março. Ninguém entrava mais no país, e a população precisou seguir normas rígidas de isolamento. Escolas e comércios não-essenciais foram fechados, aglomerações proibidas, e todo deslocamento que não fossem estritamente necessários passaram a ser não-recomendados.

Em 31 de março, o Ministério da Saúde neozelandês publicou os modelos matemáticos que previam cenários péssimos em caso de inação. “Todos os cenários mostram um nível inaceitável de mortes na Nova Zelândia sem ação forte. Nós já podemos ver esses cenários em andamento no exterior”, dizia o comunicado, em um momento em que Itália e Espanha passavam a viver uma crise aguda. A população pareceu entender.

Ir atrás dos casos

Uma parte importante da gestão da crise foi a proatividade do governo em ir atrás dos casos, e não esperar que eles chegassem até o hospital.

Em março, o governo neozelandês anunciou um investimento de US$ 500 milhões em saúde para conter a propagação da Covid-19. Desse valor, US$ 40 milhões foram destinados à saúde pública com ênfase no rastreamento de contatos, com ampliação da força de trabalho dedicada a essa tarefa.

Graças ao investimento, a capacidade de rastreamento de contatos aumentou consideravelmente, saltando de 760 ligações por dia para mais de 2.000 por dia no início de abril.

A maior parte desse trabalho era feita pelo telefone. Quando alguém era diagnosticado com Covid-19, seus contatos mais próximos são identificados e contatados diretamente, para que estejam cientes do risco de estarem contaminados para poderem se isolar adequadamente para não propagarem o vírus ainda mais, podendo também procurar um teste para ter um diagnóstico precoce. O ministério também perguntava como estava a saúde deste contato.

Esse processo precisava ser rápido, e as autoridades locais conseguiram. Um boletim mensal referente ao período entre 13 de abril e 11 de maio mostra que 80% dos contatos próximos de pessoas contaminadas conseguiam ser contatados em um até 48 horas.

O governo chegou a lançar um aplicativo que facilitou esse rastreamento de contatos próximos. Instalado voluntariamente por cerca de 500 mil, o app utiliza um sistema de QR Codes espalhado por estabelecimentos por todo o país: quando você vai a um lugar, pode escanear o código com o app, e assim é gerado um registro de onde você esteve em determinado horário, criando um diário privado, armazenado exclusivamente no seu smartphone. Os rastreadores de contatos podem pedir esse diário para identificar locais onde você esteve para encontrar outros potenciais infectados. O app também prevê a implementação de um recurso que permita descobrir se você esteve no mesmo lugar que alguém infectado, mas o recurso ainda não foi implementado.

Teste, teste, teste

Nenhum desses esforços seria possível se a Nova Zelândia não estivesse engajada em testar sua população contra a Covid-19, o que permitiu entender a doença e tomar ações pontuais e eficazes.

A Nova Zelândia é um dos países com o maior número de testes per capita, com 59.155 testes por milhão de habitantes, com cerca de 300 mil testes. Quando se observa que o país teve apenas 1.500 casos confirmados de Covid-19, isso significa que para cada diagnóstico positivo, foram realizados 200 testes.

Esses dados mostram que o sistema de saúde neozelandês estava “caçando” casos em vez de esperar que eles caíssem no seu colo na figura de um paciente já doente com sintomas severos o suficiente para procurar ajuda hospitalar. Com isso, eles também puderam identificar casos leves e assintomáticos, refletindo-se em uma baixíssima letalidade no país de 1,4%. Também tornou possível a identificação precoce de casos, permitindo às pessoas se isolarem antes que propagassem o vírus de forma ampla.

Para referência, o Brasil já acumula mais de 700 mil casos, e os dados oficiais mais recentes apontam que o país realizou cerca de 1 milhão de testes, o que significa que o país praticamente não tem diagnósticos negativos, refletindo uma postura passiva de testagem. O índice de testes per capita também é baixo: 4.700 por milhão de habitantes.

Mais do que apenas testar muito, o país foi eficaz no processamento desses testes. Novamente, o boletim de abril-maio mostra que, na média, em cerca de 30% dos casos os laboratórios conseguiram receber o “swab” (o cotonete gigante usado para coleta de amostras do fundo do nariz para testes RT-PCR) no mesmo dia do início dos sintomas de um paciente. Esse número salta para mais de 80% após o terceiro dia e chega a 100% após o oitavo.

Da mesma forma, os laboratórios conseguiram analisar essas amostras rapidamente. Em quase 40% dos casos, a notificação do resultado saiu no mesmo dia do recebimento da amostra. Depois de 2 dias, praticamente todas as amostras já tinham sido notificadas, beirando os 100%.

E agora?

O resultado dessas medidas é que agora a Nova Zelândia voltou ao nível 1 de alerta. Isso significa que a vida voltou ao normal dentro do país, com apenas algumas pequenas precauções, já que o vírus, neste momento, não parece mais circular dentro do território.

O critério para definição do nível 1 é o controle da doença no país, mas o descontrole no exterior. Por isso, o governo redobrou a atenção com quem entra em seu território. No nível de alerta 1, apenas residentes e cidadãos neozelandeses podem entrar no país (com raras exceções), mas eles também deverão obedecer a algumas restrições. Isso inclui uma quarentena obrigatória ao realizar a imigração: se estiverem sintomáticos, deverão permanecer isolados por duas semanas; se não, podem ser liberados após serem testados duas vezes e receberem um diagnóstico negativo.

O sistema de saúde continua vigilante contra o vírus, no entanto, mesmo sem casos ativos. Ainda há uma ênfase em testagem e rastreamento de contatos. Além disso, o governo segue pedindo apoio da população, promovendo a higiene básica (tossir na dobra do cotovelo, lavar as mãos regularmente com água e sabão ou álcool em gel e auto-isolamento em caso de doença) e a utilização do app para registro de locais visitados pela população.

Renato Santino é editor(a) no Olhar Digital