A Netflix está em lua de mel com o Brasil. Em uma recente carta enviada a acionistas, o serviço de streaming destacou sua forte atuação no país – onde conta com, basicamente, quase nenhuma concorrência – e também o sucesso internacional de “3%”, sua primeira série produzida em solo brasileiro.
“Desafiando o senso comum, milhões de usuários nos Estados Unidos assistiram à série dublada e legendada em inglês, fazendo de ‘3%’ o primeiro programa de televisão em português a viajar de forma significativa para além da América Latina e de Portugal”, disse a Netflix, destacando que a série é “um dos programas originais mais vistos no Brasil e na América Latina”.
Mas, para seus criadores, “3%” não foi apenas um golpe de sorte, um investimento certo para uma grande empresa de mídia. O trabalho dos brasileiros nos bastidores de todo o projeto começou há mais de 10 anos, mais precisamente na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
Parte da equipe que “inventou” a série participou, nesta quarta-feira, 1, de um painel na Campus Party Brasil 2017, em São Paulo – um dos maiores eventos de tecnologia do país. O debate foi mediado por Almir Almas, professor da Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da USP e também um dos formadores dos cineastas que criaram “3%”.
Já a equipe em si veio representada por três roteiristas e diretores da série: Daina Giannecchini, Dani Libardi e Jotagá Crema. Os três se formaram juntos na USP, onde começaram a carreira no audiovisual produzindo refilmagens de filmes de Hollywood em baixíssimo orçamento e divulgando-os no YouTube (que, na época, estava apenas começando a chamar a atenção) e no finado Orkut.
“Em 2007, a gente começou um coletivo de criação, uma produtora pequena chamada Maria Bonita Filmes, e essa produtora foi a que, lá para frente, produziu o piloto de ‘3%'”, conta Jotagá, diretor e roteirista da série. O “piloto” a que o cineasta se refere é uma minissérie feita para a internet, em três episódios de menos de 10 minutos cada, sobre um futuro distópico em que a população pobre do Brasil precisa enfrentar um intenso processo seletivo se quiser passar a viver no lado rico da sociedade. A mesma premissa que se tornaria, anos mais tarde, uma série de oito episódios na Netflix.
“O ‘3%’ surgiu de um edital da FICTV que a gente ganhou. Passou na TV Brasil o piloto, só que a gente não ganhou para fazer a série. A gente começou a fazer coisas para a TV e ficamos com esse projeto, que não ia ter a temporada inteira na TV. Foi quando a gente teve a ideia de fazer a websérie e divulgar”, continua Jotagá.
A equipe, liderada por Pedro Aguilera (idealizador do projeto original), começou a cuidar de toda a divulgação da websérie, disponível, na época, gratuitamente no YouTube. Foi no trabalho de entrar em contato com blogs, jornais e revistas, do Brasil e do mundo, que os cineastas ganharam uma matéria de destaque na publicação norte-americana Wired.
Foi graças a essa divulgação que a turma acabou entrando no radar da Netflix, que anos depois deu início às negociações para adquirir os direitos de distribuição de “3%” e acabou lançando, em 2016, a sua primeira série original em português. Com um investimento bem maior, a produção ficou por conta da carioca Boutique Filmes e a direção geral caiu nas mãos de César Charlone, indicado ao Oscar pela fotografia de “Cidade de Deus” e “Ensaio Sobre a Cegueira”.
Com um orçamento maior, e contando com o apoio constante da Netflix, a equipe começou a sonhar além das restrições financeiras que pautaram o desenvolvimento daquele piloto lançado seis anos antes. Daina Giannecchini, uma das diretoras da série, conta como a abordagem sobre a tecnologia “do futuro” passou ao centro das discussões.
“Queríamos que fosse alguma coisa, dentro do nosso orçamento e que não chamasse atenção para si, que fosse integrada ao cenário. Coisas que as pessoas não precisassem ficar segurando seus aparatos”, diz Daiana. Daí também surgiu a ideia do anel de comunicação e dos chips de identificação, do uso do vidro e de telas por toda parte.
Uma das ideias que permearam a produção, por exemplo, foi a de que essas telas – hoje tão presentes nas nossas vidas, em frente ao PC e nas palmas das nossas mãos, em smartphones – tivessem um papel de mais destaque no cenário. Por isso os personagens da série estão sempre usando projeções para se comunicar a longa distância.
Segundo Jotagá, um bom exemplo é a mesa de Ezequiel, personagem de João Miguel na série. “Em mais de 70% das vezes, aquela projeção que aparece na mesa do Ezequiel conversando com o Conselho é uma projeção em tempo real. Filmamos antes os personagens falando, montamos um projetor sobre a mesa e o ator via a projeção em tempo real. A gente fez pouca aplicação de imagem em pós-produção em ‘3%'”, diz o diretor.
Dani Libardi, outra das diretoras da série, também falou sobre o desafio de se criar um “thriller distópico”, como ela encara o gênero de “3%”, sob condições tão diferentes. Afinal, a equipe se formou pela USP numa época em que o público não imaginava o que era “maratonar” uma série pela internet (com exceção dos adeptos à pirataria ou ao torrent, claro).
“Nas aulas de audiovisual da USP a gente aprendia a diferença entre filmar para TV, para o cinema, mas a gente não aprendia o que era filmar para a Netflix, porque isso não existia na época. O que eu posso dizer é que eu, enquanto diretora, sempre pensava ‘3%’ como uma série a que eu gostaria de assisir. Eu buscava o que eu gostaria de sentir quando aparecesse ’15 segundos para o próximo episódio’ na tela”, completa Dani.
A primeira temporada de “3%” está disponível exclusivamente na Netflix. A empresa já encomendou uma segunda temporada, que ainda não tem data para estrear, mas, segundo seus criadores, está em fase de desenvolvimento e deve chegar ao catálogo do serviço de streaming em 2018.