Após pouco mais de 24 horas, o aplicativo Whatsapp voltou a funcionar gradualmente no Brasil, com a revogação de uma ordem judicial que o deixou suspenso em todo o território nacional – e que originalmente se estenderia por 72 horas (três dias). No entanto, toda essa confusão começou no momento em que o Whatsapp descumpriu uma determinação da Justiça brasileira.

Já contamos essa história no ano passado. A ordem em questão foi para que o aplicativo de mensagens entregasse à Justiça dados referentes a uma investigação de latrocínio e tráfico de drogas. O Facebook – que é dono do Whatsapp – se recusou a entregar essas informações, alegando que o conteúdo de mensagens trocadas pelo app não é armazenado em seus servidores.

“Uma empresa não pode dizer ‘não estou a fim de cumprir essa ordem’, rasgá-la, jogá-la fora e está tudo bem. O Poder Judiciário precisa se posicionar para obrigá-la a obedecer”, explica a advogada e especialista em direito digital Gisele Arantes. Segundo ela, o bloqueio do Whatsapp foi a medida considerada cabível pela Justiça para punir o descumprimento da lei.

“Bloquear o Whatsapp foi uma punição que não afeta em nada a investigação”, diz ainda Leandro Bissoli, sócio do escritório Patrícia Peck Pinheiro Advogados e também especialista em Direito Digital. Para eles, assim como outros profissionais ouvidos pelo Olhar Digital, a decisão da Justiça foi exagerada.

Mas com dois pedidos de bloqueio em pouco menos de cinco meses, uma ordem de prisão contra o vice-presidente do Facebook na América Latina e a discussão de projetos de lei polêmicos, resta a pergunta: qual é a solução que colocará de uma vez por todas um fim na disputa entre Justiça e WhatsApp?

Marco Civil

A justificativa usada pela juíza que ordenou a primeira suspensão do WhatsApp em 2015 se baseia no Marco Civil da Internet, uma lei sancionada em 2014 que define direitos e deveres para provedores e usuários da rede mundial de computadores no Brasil. No terceiro parágrafo de seu 12º artigo, a lei prevê claramente a suspensão de serviços eletrônicos que desobedecerem a Justiça.

Por outro lado, o Marco Civil não deixa explícito em seu texto que empresas de tecnologia devem armazenar o conteúdo de mensagens pessoais, mas apenas determina o que elas precisam fazer caso decidam armazenar. É essa a razão da crítica de Adriano Mendes, sócio fundador do escritório Assis e Mendes e também especialista em questões jurídicas envolvendo a internet.

De acordo com o advogado, o problema é que a Justiça pediu uma informação que, na melhor das hipóteses, não está à disposição da empresa no Brasil – e a lei não exige que ela armazene esses dados aqui. “Ou o Facebook não pode entregar porque a lei dos EUA, onde estão seus servidores, não deixa; ou porque ele não tem esses dados”, explica Adriano. “Mas não dá para saber porque o processo segue sob sigilo.”

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O advogado também explica que a ordem de bloqueio emitida esta semana é contra a lei por um outro motivo: o Marco Civil, como o nome já diz, tem caráter de ação civil, e não pode ser usado para dar embasamento a um processo criminal, como foi o caso. “Na minha opinião, o juiz errou”, afirma Adriano. Por isso, o Marco Civil não deveria ser usado para justificar pedidos semelhantes de bloqueios de apps, mas tudo não passa de uma questão de interpretação.

Lá fora

Por mais que o WhatsApp tenha um representante no Brasil – o Facebook -, e que esse representante tenha sido notificado pela ordem judicial, os dados exigidos pela Justiça, se de fato existem, devem estar armazenados nos Estados Unidos, seguindo leis diferentes. É como se o Facebook estivesse dividido entre obedecer a lei brasileira e a norte-americana.

“A gente ainda não tem na legislação um recurso rápido para alcançar empresas que estão lá fora”, explica Gisele Arantes. “Se você demanda uma informação de uma empresa X que está lá na Califórnia, por exemplo, você tem que entrar com uma ação na Justiça do Brasil, que vai enviar uma Carta Rogatória para o Supremo Tribunal de Justiça, que vai expedir um documento para esse outro país, que vai encaminhar esse documento para o departamento da Justiça responsável, para que só então essa ordem seja cumprida.”

De acordo com a advogada, todo esse processo pode levar até dois anos – sem contar os recursos e todas as ações que podem adiar ainda mais sua resolução. Contudo, no caso do Whatsapp, o Facebook é obrigado a responder as leis daqui por possuir um representante em território nacional, que transporta e gerencia esses dados estrangeiros para os usuários do nosso país.

Além disso, uma ordem judicial precisa ser obedecida em até 48 horas – o que explica por que o juiz preferiu pegar um “atalho” nesse caso, em vez de seguir o trâmite que levaria dois anos. Na visão de Leandro Bissoli, um acordo de cooperação internacional poderia resolver casos como esse sem afetar tão drasticamente o dia-a-dia dos brasileiros.

“O grande desafio é criarmos uma adequação para o Marco Civil, aplicar uma extensão extra-territorial. Como a gente não tem acesso à íntegra do processo, não há como saber se esse ponto foi levantado. Mas é preciso criar mecanismos para que as empresas de fora obedeçam às nossas leis”, diz o advogado.

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E da próxima vez?

Para Adriano Mendes, uma solução para casos como esse se encontra na Europa, na chamada Convenção de Budapeste. Em 2001, um conselho formado por diversos países definiu um “padrão” sobre como se comportar em casos de crimes virtuais. Os signatários obedecem a um mesmo conjunto de normas que facilita essas relações entre governos diferentes em ações que ultrapassam fronteiras políticas.

O Brasil foi convidado a fazer parte da Convenção de Budapeste, mas optou por não assinar por entender que “pedir permissão a outro país para investigar um cidadão do seu próprio território é prejudicial à soberania brasileira”, segundo Mendes. Em vez disso, nosso país criou o Marco Civil.

Embora seja elogiada por outros países, a iniciativa não entra em acordo com governos estrangeiros sobre como tratar esses crimes “multinacionais”, de modo que casos como o do WhatsApp podem se repetir a qualquer momento. Mais do que isso, um juiz pode até mandar bloquear a internet de todo o país ou proibir o aplicativo em definitivo, se assim decidir.

É claro que uma proibição desse nível enfrentaria recursos e liminares contrárias, como no caso dessa semana (a ordem exigia um bloqueio de 72 horas que durou bem menos do que a metade). Mas, de qualquer modo, uma reforma na maneira como o Poder Judiciário compreende essas novas tecnologias se faz necessária, segundo Adriano. “É muito chato que o Brasil acabe com a imagem que tem a China, onde a liberdade na internet é cerceada”, conclui o especialista.