A década da inteligência artificial não parece em nada com a ficção científica

Tecnologia se infiltrou em vários dos produtos e serviços que utilizamos, sem qualquer sinal da Skynet
Renato Santino12/12/2019 20h24, atualizada em 20/12/2019 16h27

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Inteligência artificial (IA) não é um conceito novo, nem de longe. A ideia de computadores capazes de raciocinar de forma análoga ao cérebro humano já existe desde os anos 1950, e a tecnologia já começava a engatinhar. Foi só nos anos 2010, no entanto, que os algoritmos da IA começaram a entrar de vez no nosso cotidiano.

Ao contrário do que a ficção científica apresenta, porém, não há Skynet. Não há robôs invadindo as ruas tentando acabar com a humanidade. O que há são sistemas que ficaram consideravelmente mais inteligentes replicando processos mentais humanos, mas dentro de um escopo bastante limitado.

Relembre como a IA ganhou força nos últimos anos:

A era das recomendações

Sim, a inteligência artificial pode ser um risco no futuro (trataremos disso mais para frente), mas neste momento ela está presente em uma série de recursos pequenos e interessantes que fazem nossa vida tecnológica um pouco mais fácil.

Talvez a aplicação de inteligência artificial mais presente em nossas vidas esteja no teclado de nossos celulares. A cada tecla que você pressiona, ele está sugerindo uma palavra e procurando um contexto para sugerir a melhor palavra para digitar na sequência, o que agiliza consideravelmente a digitação. A tecnologia aprende os termos que você costuma digitar com frequência e tem uma noção geral de linguagem para saber quais palavras costumam aparecer em seguida.

Da mesma forma, quando você abre o Google e começa a digitar os termos de sua pesquisa, você pode ver que o sistema começa a recomendar automaticamente palavras que possam ter a ver com o que você está procurando. Novamente, é a IA em ação, reconhecendo o contexto da sua busca e cruzando a informação com dados obtidos com as pesquisas de outras pessoas. Então quando você digita “Silvio”, as chances são grandes de que você esteja querendo completar o termo com o sobrenome “Santos” e, talvez, com a palavra “idade” na sequência para saber a idade do apresentador de televisão. É um tipo de comportamento preditivo habilitado por inteligência artificial

Quer mais? Abra o seu aplicativo de streaming de música (provavelmente o Spotify, que é o mais popular). Não faltam recursos para sugerir playlists com base nos seus gostos. Isso é inteligência artificial. O sistema aprende aos poucos a reconhecer as músicas e os artistas que você gosta e usa uma tonelada de dados para encontrar músicas e artistas similares com base no que outras pessoas que possuem gostos similares curtem.

Da mesma forma, você pode ver um processo similar acontecendo quando você abre a Netflix e procura pela linha “Recomendado para você”: o sistema aprende o que você gosta e consegue sugerir itens similares. O comércio eletrônico também aplica tecnologia similar para entender suas preferências e sugerir produtos que possam ser do interesse do usuário com base nas pesquisas e compras do passado.

A voz como interface

Reprodução

Uma das categorias de produtos que mais ganhou força no final da década foram as “smart speakers”, que nada mais são do que caixas de som conectadas que contam com um diferencial: uma série de microfones com os quais o usuário pode dar comandos de voz para uma assistente virtual. Esses comandos podem ser simples, como reproduzir uma música ou uma playlist a partir do serviço de streaming que você assina, ou mais complexos, permitindo gerenciar uma casa conectada usando nada além da sua voz.

Por trás dessa praticidade, há uma década de evolução dos assistentes digitais. O primeiro caso notável certamente foi o da Siri, introduzida em 2011 com o lançamento do iPhone 4s, embora só tenha sido disponibilizada em português para os brasileiros em 2014.

Não demorou muito tempo para que o Google também criasse seu próprio assistente, primeiramente chamada de Google Now, que apenas continha cards de auxílio, com algumas informações que poderiam ajudar o usuário no seu cotidiano. Com o tempo, o sistema mudou de nome para Google Assistente e ganhou uma voz. A Amazon, mesmo sem estar muito envolvida no mundo dos smartphones, também trouxe ao mundo a Alexa.

Por muitos anos, esses serviços ficaram limitados dentro do seu celular, mas aos poucos eles começaram a migrar para outros aparelhos. Hoje há fones de ouvido, caixas de som, TVs e outros equipamentos preparados para interagir por meio de comandos de voz.

No centro disso, está a inteligência artificial. A tecnologia é fundamental para que a máquina seja capaz de compreender o que você diz, transformando as ondas sonoras da sua voz em informação que pode ser interpretada e respondida. Não à toa, o sistema fica cada vez mais capaz de reconhecer os comandos: a IA precisa ser treinada para se tornar mais eficiente, e esse treinamento é feito pelo meio da inserção de um grande volume de dados. Ou seja: quanto mais você fala com a máquina, mais ela se torna capaz de entender o que você quer dizer.

Entender as palavras, no entanto, não é suficiente para uma inteligência artificial. A máquina pode até entender o que você quis dizer quando disse as palavras “tocar” e “música”, mas se ela não souber unir as duas palavras e compreender o comando para tocar música, essa habilidade é pouco útil. É por isso que a inteligência artificial também é importante para extrair o contexto do que é dito, para que seja possível haver uma compreensão que vá além de transformar sons em palavras.

A interação via chat

A indústria de tecnologia percebeu rapidamente que o mundo gosta de se comunicar por meio de mensagens de texto. Não é difícil: hoje praticamente todo mundo tem uma conta no WhatsApp ou algum serviço similar como Telegram ou Messenger, e a ideia de telefonar para alguém passou a ser aceitável apenas em casos emergenciais.

Diante dessa situação, o mercado se mexeu para introduzir uma nova interface para interagir com usuários e consumidores, e a inteligência artificial aos poucos começou a se comunicar conosco por meio de mensagens de texto. São os famosos “chatbots”.

Reprodução

Nem todos os chatbots são equipados com inteligência artificial, é importante notar. Muitas vezes eles apenas seguem um script, procurando por palavras-chave para oferecer algumas opções ao usuário, sem necessariamente estar interpretando o que é digitado. No entanto, a década trouxe uma sofisticação para esse tipo de interação com as máquinas, de modo que hoje é possível conversar com inteligência artificial real por mensagens.

Essa nova interface de atendimento não ficou limitada aos apps das empresas, no entanto. As empresas também perceberam que, se as pessoas gostam de usar o WhatsApp e o Messenger, é mais fácil atendê-las por meio dos aplicativos de mensagens em vez de precisar utilizar alguma outra ferramenta. Assim, hoje existem várias inteligências artificiais com as quais você pode bater um papo no seu app de mensagens favoritos.

A PricewaterhouseCoopers define alguns dos benefícios dos chatbots que fizeram com que as empresas gostassem da ideia. Entre elas estão a possibilidade de atendimento 24 horas por dia, respostas instantâneas às dúvidas dos clientes, a capacidade de aprender as preferências do usuário e personalização do atendimento.

Apesar de ser uma tendência, a tecnologia ainda é razoavelmente nova. Será que os chatbots ganharão ainda mais força na próxima década? Ou se tornarão mais uma moda com a qual o público não se acostumou e a indústria decidiu abandonar? Teremos a resposta em 2029.

Os olhos da IA

Uma das aplicações mais comuns da inteligência artificial no nosso cotidiano tem a ver com a visão. É uma tecnologia chamada de visão computacional, que faz com que as máquinas consigam interpretar objetos e imagens em fotos ou vídeos por meio de muito treinamento.

Uma das funções mais interessantes ligadas à tecnologia está permitir que pessoas cegas consigam saber o que há em uma foto mesmo sem conseguir enxergá-las. O Facebook faz isso, por exemplo: se você publicar uma foto em seu mural, ela recebe automaticamente tags que identificam o que está na imagem, de forma que um usuário de recursos de acessibilidade pode saber se aquela imagem possui, por exemplo, um cachorro ou uma criança.

Você também pode ver essa tecnologia em ação ao abrir o Google Fotos. O aplicativo analisa automaticamente os elementos de uma foto de forma a reconhecer rostos e objetos que compõem a imagem. Assim, se você quiser encontrar uma foto de um gato que você tirou há alguns meses, basta digitar a palavra “gato” e a imagem deve aparecer.

Outro aspecto visual da inteligência artificial que começou a entrar na vida do usuário de tecnologia está na câmera do celular. Os algoritmos, em parceria com os sensores, são capazes de interpretar a cena que está prestes a ser capturada para fazer todos os ajustes necessários para fazer a melhor foto possível. Algumas câmeras clicam várias fotos em sequência e escolhem uma que tenha alcançado o melhor resultado possível e, para isso, também são necessários algoritmos.

Nem todas as aplicações de visão computacional são tão próximas do consumidor, no entanto. A tecnologia também é fundamental na robótica, especialmente para robôs que precisam enxergar o terreno para poderem caminhar, como é o caso do Spot da Boston Dynamics; é preciso entender os obstáculos ao redor para poder caminhar com segurança, e isso é inteligência artificial. Veículos autônomos também dependem profundamente da tecnologia para saber se é seguro seguir em frente ou quando é hora de frear ou desviar.

Homem versus máquina

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No comecinho da década, a IBM já demonstraria que a inteligência artificial veio para ficar e, aos poucos, superar as capacidades humanas até mesmo em tarefas profundamente humanas, como um game show de TV. Em 2011, a empresa demonstrou a capacidade do seu supercomputador Watson em uma disputa de “Jeopardy!”, um programa de TV bastante tradicional nos EUA.

Se você não está familiarizado com o jogo, o que é natural, já que ele não é transmitido por aqui, o conceito é simples. Em vez de responder perguntas, o participante é apresentado a uma resposta e precisa descobrir qual é a pergunta correta para aquela resposta. É uma inversão de conceitos que não é muito difícil de entender para um cérebro humano, mas pode ser bastante confusa para uma máquina.

Desde sempre, os algoritmos evoluíram para responder às nossas perguntas. Basta lembrar das pesquisas que fazemos no Google. Se você perguntar “quantos anos tem o Silvio Santos?”, o sistema vai te responder, buscando as informações nas fontes corretas. Inverter essa lógica não é tão simples assim, e mesmo assim o Watson venceu o “Jeopardy!”.

Alguns anos no futuro, foi a vez do Google demonstrar que a inteligência artificial deve superar a capacidade de raciocínio humana na maior parte das tarefas. As máquinas já haviam superado Garry Kasparov, campeão de xadrez, desde os anos 1990 no desafio do DeepBlue. Nesta década, foi a vez do jogo de tabuleiro oriental Go ser dominado pela IA.

Por muitos anos, o jogo foi considerado complexo demais para que uma inteligência artificial pudesse dominá-lo a ponto de superar os mestres humanos da modalidade, pelo fato de que as combinações de posições de peças em um tabuleiro podem superar o número de átomos no nosso universo. No entanto, o Google mostrou que era possível ao criar o algoritmo AlphaGo, alimentado com dados de milhares de jogos de Go para que pudesse reconhecer padrões e desenvolver estratégias próprias, ao ponto de criar uma ação inédita chamada de “movimento 37”, que chegou até mesmo a ser considerada como um erro por especialistas, mas que se provou chave para vencer o campeão Lee Se-Dol na segunda partida.

Após provar o sucesso do AlphaGo, a DeepMind decidiu forçar um pouco mais a barra. A empresa anunciou o algoritmo AlphaZero, que leva esse nome pelo fato de que ele não foi alimentado com nenhum banco de dados de jogos para seu treinamento. Para desenvolver sua técnica, ele apenas disputou incontáveis partidas consigo mesmo, o que lhe permitiu aprender o que funciona e não funciona em um jogo de Go. O AlphaZero se mostrou um sucesso e derrotou até mesmo o campeão AlphaGo.

A IA também mirou os jogos eletrônicos. A DeepMind e a Blizzard fecharam uma parceria para que a máquina treinasse suas técnicas com Starcraft 2, e os resultados, novamente, foram impressionantes. O algoritmo, chamado de AlphaStar, se mostrou capaz de dominar pelo menos 99,8% dos jogadores mesmo com as mesmas restrições aplicadas aos humanos, como um número limite de ações a cada cinco segundos e a visualização de apenas uma parte do mapa de jogo.

A ideia desses experimentos com duelos entre humanos e máquinas, no entanto, não é apenas demonstrar que a IA está aí para superar nossa capacidade em todos os aspectos, mas sim mostrar a diversidade de tarefas para as quais o algoritmo pode se preparar. A DeepMind quer usar essa capacidade para atividades verdadeiramente úteis, como na medicina e robótica.

Preocupações e limitações

A evolução da inteligência artificial nesta década trouxe consigo muita preocupação. Sim, a tecnologia hoje não tem nada a ver com o futuro distópico representado no futuro de ficção científica, mas isso não quer dizer que não existam questões graves que precisam ser debatidas.

Um dos temas que mais preocupa a indústria é o uso da inteligência artificial em campo de batalha. Como uma máquina seria capaz de decidir quem deve matar sem intervenção humana? O envolvimento de menos soldados humanos criaria mais incentivos para mais guerras? As preocupações não são poucas.

“Se alguma potência militar seguir adiante com o desenvolvimento de armas com inteligência artificial, uma corrida militar mundial é virtualmente inevitável, e o ponto de chegada dessa trajetória tecnológica é óbvio: armas autônomas serão as Kalashnikovs de amanhã. Ao contrário das armas nucleares, elas não requerem materiais caros ou difíceis de obter, então elas se tornarão comuns e baratas para todas as forças militares produzirem em massa. Será uma questão de tempo até que elas apareçam no mercado paralelo e estejam nas mãos de terroristas, ditadores querendo controlar melhor sua população, líderes militares interessados em realizar limpezas étnicas, etc. Armas autônomas são ideais para tarefas como assassinatos, desestabilização de nações, subjugação de populações e a morte seletiva de um grupo étnico em particular”, diz uma carta aberta publicada pelo Future of Life Institute apoiada por figuras como Steve Wozniak, fundador da Apple; Elon Musk, fundador da Tesla, SpaceX e outras empresas; Stephen Hawking, renomado físico, e Jack Dorsey, fundador e CEO do Twitter.

O uso militar da inteligência artificial já tem feito barulho dentro de grandes empresas de tecnologia. O Google precisou rever um projeto chamado Maven, no qual fornecia tecnologia de IA para o Pentágono para utilização de aprendizado de máquina para analisar e interpretar imagens geradas por drones. A reação dos funcionários à participação em atividades de guerra foi tão negativa que a companhia se viu forçada a desistir do contrato, ou se arriscar a perder talentos importantes que poderiam pedir demissão.

As polêmicas da inteligência artificial vão além da questão militar. Existe, sim, uma preocupação real com um cenário similar à Skynet, embora não necessariamente envolvam robôs assassinos. Uma IA superinteligente pode causar danos mesmo sem um corpo físico, especialmente em um universo ultraconectado.Reprodução

O premiado físico Stephen Hawking, por exemplo, enquanto esteve vivo, sempre manifestou preocupação em relação ao avanço da inteligência artificial. Ele chegou a afirmar que a tecnologia poderia representar o fim da humanidade. “Sucesso em criar uma IA efetiva pode ser o maior evento da história de nossa civilização. Ou o pior. Nós não sabemos. Então não podemos saber se seremos infinitamente ajudados pela IA, ou ignorados e descartados, ou destruídos por ela”, chegou a afirmar em 2017.

Bill Gates também chegou a comparar a tecnologia com a energia nuclear pelo potencial de ser usada tanto de forma construtiva e benéfica quanto de forma destrutiva, no caso de uma IA descontrolada.

Por enquanto, no entanto, a inteligência artificial ainda tem um impacto pequeno em nossa sociedade, e não se mostra nem perto dos cenários apocalípticos. As coisas permanecerão assim até 2029?

Renato Santino é editor(a) no Olhar Digital