Os últimos anos não foram gentis com o Facebook. A rede social, que já foi um espaço ingênuo para manter contato com amigos e parentes, virou um campo de batalha político, onde o pior do ser humano se mostra dia após dia, e posições extremistas ganham cada vez mais tração, se aproveitando do fator de choque para ampliar seu alcance com o algoritmo. Essa nova realidade mudou não apenas a percepção do público sobre a empresa, mas também a visão dos próprios funcionários sobre o trabalho que exercem.
Qual é o papel do Facebook nessa situação, afinal de contas? Essa é uma dúvida que Mark Zuckerberg, fundador da companhia, tem tentado responder para seus funcionários, cada vez mais críticos sobre a atuação da companhia na contenção desses discursos. Uma série de gravações obtidas pelo site The Verge mostra como o executivo tenta se equilibrar diante de pressões cada vez maiores, tanto internas quanto externas.
Essas pressões começaram a ganhar mais força a partir da eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016, que finalmente deixaram claro o poder das redes sociais e, principalmente, o potencial de propagação de desinformação e discurso de ódio, amplificados pelo algoritmo que impulsiona o que gera mais engajamento e nada é tão eficaz para isso do que a revolta. De lá para cá, a empresa passou por uma série de fases até finalmente, em 2020, ver se novamente no centro de um dilema político.
Em junho, quando as manifestações do movimento “Black Lives Matter” começaram a tomar força nos Estados Unidos, impulsionadas pelo assassinato de George Floyd por um policial, Donald Trump deu uma declaração que chacoalhou a companhia, gerando revolta entre funcionários. O presidente dos Estados Unidos ameaçou os manifestantes, afirmando que os tiros começariam junto com os saques. A declaração fez com que o Facebook precisasse se questionar sobre seu papel: a empresa deveria tirar o post do ar por sua ameaça à integridade física ou deveria mantê-lo, respeitando o fato de que a posição ocupada por Trump faz com que suas declarações sejam invariavelmente de interesse público? No fim, Zuckerberg decidiu manter a publicação no ar.
Funcionários pediam mais ação contra posts de Trump, mas companhia sofre pressão de conservadores (Divulgação/Casa Branca)
Durante a reunião com os funcionários, Zuckerberg e Sheryl Sandberg, diretora operacional do Facebook e a segunda pessoa mais importante na companhia, defenderam essa posição quando foram diretamente criticados por funcionários que acreditavam que a empresa deveria ter tomado o caminho contrário.
“O que tentamos fazer é não tomar um ponto de vista. Eu tenho um ponto de vista muito forte sobre o presidente. E um ponto de vista pessoal e que eu mantenho profundamente, mas não é algo que deve entrar no meu julgamento quando eu estou fazendo mudanças em políticas. Temos que ser uma plataforma neutra, e tomar essas decisões de um lugar de regras e princípios”, afirmou Sandberg.
Apesar da afirmação de Sheryl Sandberg, a empresa acredita que pode, sim, defender alguns pontos de vista. No mesmo dia, Neil Potts, diretor de políticas públicas do Facebook declarou em uma reunião com funcionários na ocasião de lançamento do resultado de uma auditoria de direitos civis no Facebook quando questionado sobre a compatibilidade dessa neutralidade defendida por Sandberg e o progresso em questões raciais. “Não acredito que sejamos necessariamente neutros”, ele disse, apontando que a remoção de discurso de ódio e incitação à violência é, sim, tomar um lado, sem necessariamente cair em partidarismos, e que os padrões da comunidade não são necessariamente neutros. “Queremos um produto que é bom para nossa comunidade, e isso não é incompatível com direitos civis”, disse.
Zuckerberg também reconheceu que existe um descompasso entre os funcionários do Facebook e sua base de usuários, especialmente nos Estados Unidos. O executivo foi questionado sobre o papel de Joel Kaplan, vice-presidente da empresa de políticas públicas globais, que estaria exercendo poder demais sobre as decisões na empresa na visão de alguns funcionários. Kaplan é conservador, participou do governo de George W. Bush e foi apontado em algumas matérias como alguém que estaria impedindo a companhia de tomar ações que pudessem contrariar interesses do espectro político mais à direita nos Estados Unidos. Foi quando Zuckerberg admitiu que a equipe do Facebook tende a ser mais à esquerda do que seus usuários.
“Uma das coisas de que nós falamos pouco dentro da empresa é que a comunidade que servimos tende a ser, na média, ideologicamente um pouco mais conservadora do que nossa base de funcionários. Talvez ‘um pouco’ seja um eufemismo. Se realmente queremos fazer um bom trabalho de servir as pessoas, precisamos levar em consideração que há visões diferentes para coisas diferentes, e que se alguém discorda de uma visão, isso não significa necessariamente que eles são odiosos ou têm más intenções”, afirmou Zuckerberg.
Zuckerberg também abordou o projeto Stop Hate for Profit, que pressionou empresas e fez com que algumas das maiores marcas do planeta interrompessem a publicidade na rede social como forma de pressionar ações contra discurso de ódio de forma mais incisiva. Na ocasião, a empresa se defendeu afirmando que já moderava conteúdo desse tipo. Internamente, o executivo se mostrou mais firme.
“No fim das contas, nós não vamos mudar nossas políticas ou abordagens sobre qualquer coisa baseados em ameaças a um percentual pequeno, ou qualquer percentual, da nossa receita. Vamos fazer o que achamos ser correto e o que acharmos que vai servir melhor a comunidade ao longo do tempo”, afirmou ele, acreditando que os anunciantes voltariam em breve, especialmente com o anúncio de novas medidas que, por coincidência, foram frutos de auditoria interna realizada por dois anos, e teve seus resultados divulgados exatamente naquela época.
Os áudios também mostram que o Facebook não se vê como responsável pelo florescimento desses discursos de ódio, ou que, no mínimo, as críticas são injustas. Isso porque a empresa não é lembrada quando outros movimentos, encarados como positivos por Sheryl Sandberg, se organizam pela plataforma.
“Nós não recebemos nenhum crédito por esses movimentos. Não recebemos créditos por nenhum deles. Mas as mulheres corajosas que falaram no ‘Me Too’, as pessoas corajosas que falaram no ‘Black Lives Matter’ e as pessoas corajosas que organizaram a ‘Marcha das Mulheres’ precisavam de uma ferramenta. Existe uma razão para que esteja acontecendo agora e não antes”, afirma ela.
Sheryl Sandberg, segunda pessoa mais influente no Facebook, critica falta de créditos à empresa por movimentos positivos (JD Lasica/Socialmedia.biz)
Como nota o site The Verge, os áudios mostram uma empresa dividida. Sim, a maior parte dos funcionários é progressista, como é em grande parte o Vale do Silício e o estado da Califórnia, e espera ação do CEO nesta direção, enquanto a base de usuários e a classe política exerce mais força para que a empresa siga para o outro lado, o que faz com que Zuckerberg fique “em cima do muro” e desagrade todos os lados. Essa divisão política, que não é necessariamente um problema só do Facebook, mas da sociedade como um todo. Zuckerberg está ciente dessa questão, que prevê dias difíceis em novembro, quando acontecem as eleições presidenciais nos Estados Unidos.
“Há potencialmente alguma chance de que muitas pessoas tomem as ruas, causando um período violento, ou pelo menos que haja alguma violência”, prevê ele em um dos áudios. E a empresa já confirmou que restringirá conteúdo se os Estados Unidos chegarem a esse ponto.