Por Bruno Dias do Vale do Silício. Fotos por Bárbara Neumann.
Redwood City, EUA – “Quem aqui dirige um veículo híbrido, usa transporte público ou se desloca com uma bicicleta para o trabalho?”. Na pequena sala de palestras de um condomínio comercial em Redwood City, cidade localizada no Vale do Silício, a pergunta ganha a resposta positiva de mais da metade da audiência presente.
Rebekah Moses, gerente de sustentabilidade da startup Impossible Foods, dirige-se aos que ainda estão de braços levantados. “Vocês deixam o carro em casa – ou desistiram de ter carro – porque surgiram alternativas, muitas vezes melhores e mais convenientes, certo?”, diz, arrancando acenos concordantes com a cabeça. “É o que nós estamos fazendo com o hambúrguer. Antes, você ia a churrasco ou a uma hamburgueria e não havia uma alternativa que fosse tão boa quanto a carne de boi. Agora vocês têm”.
A introdução da executiva busca atrair a atenção do desconfiado grupo de jornalistas que está diante do principal produto da empresa: o Impossible Burger. O “hambúrguer impossível” tem a forma, a cor, a textura e até o cheiro de um hambúrguer tradicional (Mais para o fim do texto falamos do teste de sabor e damos o nosso veredicto). Só que a carne leva tudo – menos partes do boi.
Pequenas tigelas dispostas sobre uma mesa apresentam alguns dos principais componentes do alimento: proteínas de trigo e de batata, goma de konjac e xanthan (vegetais), gordura extraída de óleo de coco, algumas vitaminas e a estrela principal do prato: a leghemoglobina, substância extraída da raiz da soja.
Chamada de “heme”, o líquido vermelho é o responsável por dar o aspecto suculento e o sabor de carne bovina ao hambúrguer feito de componentes vegetais. A reportagem do Olhar Digital provou a “heme”. Além de um aspecto vermelho denso, nota-se um gosto metálico, levemente adocicado, que lembra o gosto de sangue fresco.
Quem descreve cada um dos componentes que formam o hambúrguer enquanto os mistura numa tigela é Celeste Holz-Schietinger, uma das cientistas-chefe da Impossible Foods. Ela explica o complexo processo de engenharia reversa por trás do desenvolvimento do produto, que já consumiu mais de US$ 100 milhões em investimentos e tem o bilionário Bill Gates como um dos investidores.
Em seu laboratório, a Impossible Foods identificou ao longo dos últimos anos quais componentes da carne de boi eram responsáveis por cada umas das sensações que sentimos ao comer. O cheiro, a suculência e a textura são alguns exemplos desses aspectos. Depois de isolar esses elementos – explica Celeste, enquanto forma os discos de carne de planta com suas mãos – os cientistas foram buscar no reino vegetal as substâncias que reproduziam a mesma sensação em quem os consumia. A heme, portanto, substitui a função do sangue da carne bovina, enquanto o óleo de côco emula o papel da gordura animal, e assim por diante.
“O resultado está aqui”, diz, enquanto vira o hambúrguer na frigideira, mostrando como a aparência da carne frita é similar ao da vista com carne. “É a reação da heme com nutrientes como aminoácidos e vitaminas que também produz esse cheiro do hambúrguer bovino”, afirma. De fato, é difícil distinguir se o cheiro que vinha da frigideira era de um alimento feito de carne bovina ou de planta.
O hambúrguer fica pronto num tempo inferior ao que levaria um tradicional de carne, o que, no futuro pode ser um diferencial para ser vendido a redes de fast foods. A carne está selada por fora e com o centro rosa avermelhado, como se espera do ponto do hambúrguer. Mas, afinal, o que imagino que a essa altura do texto você deve estar curioso para saber: esse negócio é bom ou não é?
É bom, para começar pela resposta. Muito bom, aliás. Mas é bom dizer que a avaliação geral talvez esteja contaminada com a expectativa baixa que eu nutria em relação ao Impossible Burger. Já havia experimentado alguns tipos de opções vegetarianas antes e sempre tive a mesma sensação que pode ser descrita por: “hum, ok. Mas não é um hambúrguer”. O tal hambúrguer impossível é bom de verdade. Lembra o gosto de um desses hambúrgueres congelados que compramos em supermercados no Brasil. Um pouco maior e mais suculento. Não é comparável a um desses mais elaborados, que pagamos dezenas de reais no Brasil, mas convence.
A Impossible Foods mede isso, aliás, com pesquisas periódicas: há três anos, a empresa fez um teste com cerca de 200 americanos, comedores de carne vermelha, para saber se eles sabem identificar qual é o hambúrguer de planta e qual era o bovino. Mais de 90% souberam identificar o hambúrguer bovino e disseram que ele tinha um sabor mais agradável. Após três anos de pesquisas e ajustes, o índice caiu para 54% na última pesquisa – não cravaria em qual dos grupos eu estaria se o teste fosse hoje.
Não é por acaso que os testes são feitos com gente que venera o hambúrguer tradicional, de carne, suculento e com sangue. Engana-se quem pensa que a Impossible Foods quer atrair o consumidor que não tolera o gosto da carne. “Não estamos fazendo um produto para vegetarianos ou veganos”, diz Pat Brown, cientista que fundou a Impossible Foods em 2011 e atualmente é o presidente da empresa. “Queremos ter um negócio lucrativo em escala global. Para isso, nosso principal alvo são os comedores de carne bovina. Queremos convencê-los de que o nosso hambúrguer não é apenas igual, mas melhor do que o que eles estão acostumados a comer”.
Brown e sua equipe parecem ter todas as respostas de pessoas céticas na ponta da língua. Quando questionados sobre o fato de mais da metade dos consumidores nos testes ainda achar o seu produto inferior, a resposta foi que a empresa tem investido para evoluir cada vez mais. “A vaca parou de evoluir. É a carne que conhecemos”, diz em tom descontraído David Lee, executivo com passagem por diversas empresas do Vale do Silício e que ocupa o cargo de chefe de operações e finanças da Impossible Foods. “Nosso hambúrguer está em processo constante de evolução em nossos laboratórios. Então é bem provável que a gente supere o sabor”, diz.
Tudo ainda não passa de uma promessa, mas é fato de que a Impossible Foods dispõe de uma invejável infraestrutura de cientistas e máquinas dispostas a acabar com a necessidade de o ser humano consumir carne de animais. Metade do prédio da empresa em Redwood City, que abriga pouco mais de 250 funcionários, é ocupado por um laboratório repleto de equipamentos futuristas, além de uma cozinha experimental de onde sairão os próximos produtos da empresa. Ali, a Impossible Foods diz que poderá emular o sabor da carne de outros animais e até o de ovos mexidos.
Num dos cantos do laboratório, em que fotos e vídeos são proibidos, um grupo trabalha com equipamentos que analisam a textura da fibra da carne bovina, para que ela possa ser reproduzida com fidelidade no hambúrguer impossível. A poucos metros dali, num grande aquário quadrado, há uma máquina com um acessório que parece um inalador. A explicação sucinta para um leigo: é a máquina que isola cada componente do hambúrguer de carne de boi e permite captar o cheiro de cada um deles.
Numa sala separada ainda dentro do laboratório, cientistas aprimoram o processo de produção da heme. Basicamente, eles extraíram o DNA da substância retirada da raiz da soja e desenvolveram um método que permite fabricar uma grande quantidade de heme a partir de um processo de fermentação. “É similar à fermentação usada para fabricar cerveja belga”, diz Rachel Fraser, cientista que assina a patente que permite à empresa fabricar dezenas de milhares de litros de heme por mês. Só assim é possível produzir as cerca de 500 toneladas mensais do Impossible Food, na fábrica da empresa localizada em Oakland, cidade localizada do outro lado da baía de San Francisco.
A patente é o que faz a companhia existir e se diferenciar das demais, já que do contrário o hambúrguer impossível precisaria de uma quantidade enorme de soja plantada e terra para se desenvolver. Quando Pat Brown pensou a Impossible Foods pela primeira vez, em 2009, suas principal preocupação era com a produção de comida sustentável no futuro. Professor emérito de Stanford e com a aparência de cientista de filme de Hollywood, Brown tem de cor alguns números que sustentam a sua ideia. Segundo ele, um Impossible Burger usa uma área de terra 95% menor do que a usada para fabricar um feito de carne bovina. Também emite 87% menos gases e consome um quarto da água usada.
É claro que tudo isso tem um preço, ainda muito alto para eleger o Impossible Foods como a empresa que mudará a forma como consumimos alimentos de origem animal. O modelo de negócio da empresa é baseado na venda por restaurantes parceiros. São 300 hoje nos Estados Unidos que vendem o hambúrguer impossível. Os preços variam, mas numa rápida pesquisa um prato feito com o Impossible Burger fica entre 50% e o dobro do preço dos tradicionais de carne bovina.
A empresa defende que tudo é uma questão de tempo, de escala e de impacto econômico, já que o custo de produção tende a baratear com o tempo. Não revela seus custos e dá detalhes de suas finanças, mas sabe-se que pelo menos por enquanto a empresa está longe de dar lucro. Brown e sua equipe têm uma meta ambiciosa: zerar o uso de carne bovina na produção de hambúrgueres até 2035 nos Estados Unidos. Para atingi-la, terão de agradar não apenas o paladar, mas o bolso dos comedores de carne americanos.