Vacinas contra Covid: por que os testes podem não dizer se elas previnem casos graves

Desenho dos estudos foi planejado para computar qualquer caso, mesmo os mais leves, entre os voluntários, e isso pode afetar os resultados
Renato Santino26/10/2020 23h54

20200909085603

Compartilhe esta matéria

Ícone Whatsapp Ícone Whatsapp Ícone X (Tweeter) Ícone Facebook Ícone Linkedin Ícone Telegram Ícone Email

Nunca se falou tanto em fase 1, 2 e 3 de desenvolvimento de um composto farmacêutico. A corrida por uma vacina contra a Covid-19 trouxe para o cotidiano do cidadão comum alguns dos jargões da ciência. Neste momento, há vários estudos chegando à fase 3, que definirá se algum composto poderá ser distribuído para imunização da população. E depois?

A fase 3 visa entender a eficácia da vacina, principalmente. É algo que não pode ser medido nas fases anteriores, voltadas principalmente para segurança e a capacidade de geração de anticorpos, pela falta de uma base robusta de voluntários, que dão mais poder estatístico aos resultados.

Até o momento, algumas farmacêuticas já abriram seus protocolos que determinam o que é uma “vacina eficaz”. Sinovac, Moderna, Pfizer e AstraZeneca já informaram que esperam que um número pré-definido de voluntários precisam se contaminar com a Covid-19 para obter essa resposta. Quando esse número for atingido, os pesquisadores observarão quantos deles receberam a vacina e quantos receberam o placebo e, se houver uma diferença estatística relevante entre os dois grupos, significa que o composto será declarado eficaz. O tamanho dessa diferença determinará o percentual de eficácia.

Contudo, existem algumas críticas a esse método. A revista científica BMJ traz um editorial, assinado pelo editor Peter Doshi, que afirma que o desenho desses estudos conta com um erro metodológico que impede a medição correta da eficácia de uma vacina.

Uma vacina antiviral bem-sucedida, como ele descreve, deve, primariamente, proteger o organismo de desenvolver uma forma grave da doença. Além disso, a vacina, idealmente, cortaria a cadeia de transmissão, impedindo que quem foi vacinado transmita o vírus adiante. Não é o que os estudos estão medindo até o momento.

Os cientistas estão computando qualquer caso confirmado de contágio com sintomas, mesmo os mais leves, como um evento que entra naquele número mínimo necessário para realizar a análise. A queixa com essa metodologia é de que, ao fazer isso, os cientistas não estão analisando se a vacina realmente é capaz de fazer o seu trabalho, que é proteger contra os casos mais graves da doença. Como os casos leves de Covid-19 são mais comuns do que os graves, os resultados se basearão majoritariamente na análise de casos menos perigosos entre os voluntários. Uma análise mais rigorosa dependeria de acompanhar com mais afinco os casos moderados e graves, para obter uma resposta mais definitiva sobre proteção contra esse tipo de infecção.

No entanto, como os casos mais severos de Covid-19 tendem a ser mais raros, acumular dados sobre esse tipo de quadro seria mais difícil, necessitando de mais tempo ou de mais voluntários, e ambas as alternativas parecem pouco viáveis diante da pressa por uma vacina funcional.

Simultaneamente, as pesquisas não estão medindo a capacidade das vacinas de interromper a cadeia de transmissão do vírus. Tal Zaks, diretor médico da Moderna, explica ao BMJ que, para isso, seria necessário acompanhar cada voluntário e realizar dois testes PCR por semana por um longo período, o que não seria financeiramente viável com uma base de 30 mil participantes.

É preocupante?

Outro artigo apresenta um contraponto. Apesar de, sim, o acompanhamento de casos graves não ser a prioridade das vacinas em teste até o momento, isso não deve invalidar os estudos, como defende Sarah L. Caddy, pesquisadora de imunologia viral, em artigo publicado no site The Conversation.

Ela defende que, ainda que os estudos não sejam projetados para acompanhar os casos mais severos, os pesquisadores ainda analisarão os níveis de gravidade das infecções e poderão obter informações valiosas, ainda que as evidências sejam mais frágeis, devido ao baixo número de casos.

A pesquisadora aponta também que outra crítica comum é a falta de idosos e imunossuprimidos nos estudos, justamente algumas das pessoas mais em risco em caso de contágio. Isso também não invalidaria os estudos; no máximo não garantiria a eficácia entre esse público específico. Afinal de contas, mesmo uma vacina que seja eficaz apenas entre adultos teria sua utilidade se impedir que eles propaguem o vírus e o leve até os grupos menos protegidos.

No fim das contas, no entanto, ela conta que a eficácia real de uma vacina só pode ser aferida quando ela tem ampla distribuição dentro de uma população. Até lá, os testes clínicos apenas podem analisar uma fração dessa população para avaliar os resultados para extrapolar o que acontece quando a mesma técnica for aplicada “para valer” para milhões de pessoas. Mesmo com a fórmula em ampla distribuição, os estudos devem prosseguir por mais alguns anos.

Renato Santino é editor(a) no Olhar Digital