A literatura científica sobre a pandemia do novo coronavírus acumulou mais de 67 mil artigos e quase 20 mil pré-publicações até julho deste ano. É o que aponta a plataforma Dimensions, sistema de informação de pesquisas científicas ligado à empresa de tecnologia britânica Digital Science.

O volume inédito, que já foi reconhecido pela revista Science como “um dos maiores picos da literatura científica de todos os tempos”, reflete a aceleração dos processos editoriais de periódicos científicos e a consolidação de repositórios de pré-publicações como ferramentas importantes de difusão ágil do conhecimento.

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Uma pesquisa conduzida pela Universidade Radboud, na Holanda, e divulgada no repositório BioRXiv estudou o tempo de análise e publicação de artigos revisados por pares em 14 revistas médicas. Os resultados indicam que, para trabalhos relacionados ao novo coronavírus, o tempo médio de processamento caiu quase pela metade; de 117 para 60 dias. Por outro lado, o período de análise para artigos sobre outros assuntos aumentou.

De acordo com e editora da Revista Epidemiologia e Serviços de Saúde, Leila Posenato Garcia, em meio à pandemia do novo coronavírus, além de encurtar prazos do processo editorial, revistas científicas também promoveram chamadas específicas para receber submissões de pesquisas sobre a Covid-19.

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Leila Posenato Garcia também é pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Imagem: Reprodução

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O editor-chefe da revista Anais da Academia Brasileira de Ciências, Alexander Kellner, acrescenta que os periódicos científicos têm a “responsabilidade” de divulgar rapidamente resultados de pesquisas. “Em um dado momento você quer colocar a informação adiante porque isso ajuda os outros a fazerem suas pesquisas”, explicou.

Para ele, a situação atual não configura um parâmetro permanente para as revistas científicas, mesmo para as envolvidas nas áreas de saúde. “Estamos vivendo um momento pontual em que todos nós esperamos respostas rápidas, para um problema complexo”, afirma.

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Processo editorial

O encurtamento dos prazos para a análise de artigos, entretanto, não é uma proposta simples. O processo de revisão por pares de periódicos científicos envolve diversas pessoas e etapas. Após os autores de um artigo submeterem o trabalho a uma revista, o primeiro filtro corresponde ao editor que avalia se a pesquisa está dentro do escopo da publicação. Em alguns casos, o próprio editor ainda verifica se há erros evidentes no projeto.

A etapa seguinte corresponde à revisão por pares. Os editores selecionam geralmente de três a quatro pesquisadores para analisar o artigo em um determinado prazo. Algumas revistas permitem que os autores indiquem parte dos revisores – o que depende da política editorial de cada periódico.

A ideia do processo é identificar inconsistências ou oportunidades de aprimorar a clareza do estudo. Caso sejam detectados erros, os revisores preparam relatórios com observações sobre o artigo e encaminham para editores da revista, que avaliam se acatam, ou não, os apontamentos. Se julgarem necessário, os editores podem solicitar que os autores alterem pontos no projeto antes da publicação.

“O que varia entre as revistas é a quantidade de revisores e o tempo do processo”, afirma Adeílton Brandão, editor-chefe da revista Memórias Fiocruz.

Impacto na cadeia

Além de afetar o processo de revisão, a pandemia atingiu toda a cadeia de produção científica, apontam os especialistas. Eles destacam que a crise impactou de forma diferente as várias áreas do conhecimento. Apesar de algumas revistas relacionadas ao campo da medicina e das ciências biológicas acelerarem processos editoriais, houve um atraso geral na estrutura de publicação.

Alexander Kellner ressalta que nos Anais da Acadêmia Brasileira de Ciências a crise não afetou a revisão de trabalhos, mas “acertou em cheio” a editoração do periódico. Ele diz que muitos periódicos estenderam o tempo de análise de artigos, bem como ampliaram os prazos para autores apresentarem correções.

O editor-chefe da Anais da ABC adiciona que, devido às condições da pandemia, muitos cientistas estão afastados de seus laboratórios e outros campos de trabalho. “Para certas áreas a dificuldade para produzir dados pode acarretar um declínio da pesquisa.”, disse Kellner.

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Além de editor da Anais ABC, Alexander Kellner é diretor do Museu Nacional. Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

Leila Posenato relata que cada revista faz o possível para se adequar. Ela diz que, apesar do aumento do volume de submissões e do trabalho remoto, a Revista Epidemiologia e Serviços de Saúde conseguiu absorver a demanda. Porém, em outras publicações, funcionários tiveram que transportar equipamentos dos locais de trabalho para suas casas.

A editora ainda ressalta o aumento da carga de trabalho doméstico, principalmente para cientistas mulheres e famílias com filhos. Segundo ela, evidências científicas apontam que mulheres negras representam o grupo de pesquisadores mais afetado pela pandemia. 

Gargalo

A crise enfatizou um dos principais gargalos do modelo de revisão por pares: garantir revisores qualificados para analisar artigos. Posenato diz que, no Brasil, a dificuldade não é encontrar pessoas adequadas, mas fazer com que elas aceitem o trabalho. A editora explica que a tarefa geralmente não é remunerada, embora demande horas de dedicação. Segundo ela, ainda falta ao Brasil uma cultura de valorização dos revisores.

“Muitas vezes as pessoas [os revisores] não recebem nenhum reconhecimento. Esse trabalho não é contado para concursos para o magistério ou carreira de pesquisa, não conta para avaliações de bolsa de produtividade de agências de fomento”, pontua a cientista.

A dificuldade é uma herança anterior à pandemia do novo coronavírus. De acordo com Adeilton Brandão, o corpo editorial da revista tem que convidar em média quatro ou cinco pesquisadores para garantir um único convite aceito de revisão de artigo.

Velocidade e Qualidade

Diante dos impactos da Covid-19 na publicação científica, renomadas revistas médicas como a norte-americana The Lancet e a britânica New England Journal of Medicine (NEJM) protagonizaram episódios de retração de artigos científicos publicados em suas plataformas. A primeira revista retirou um artigo que tratava de testes clínicos com a hidroxicloroquina em diversos hospitais dos Estados Unidos; a segunda retirou um trabalho que estudava efeitos de uma droga para pressão alta no quadro de pacientes com Covid-19.

Ao The New York Times, os editores dos periódicos reconheceram que “nunca deveriam ter publicado os artigos” e que revisores deveriam ter sido capazes de identificar os problemas dos estudos. Posenato ressalta, no entanto, que a revisão por pares é uma atividade humana e inerente a falhas. Ela explica que o volume acentuado e a pressa por publicar resultados devido à pandemia aumentam a probabilidade de ocorrer falhas no processo editorial.

Por outro lado, para a cientista, reconhecer e corrigir os erros após a revisão corresponde a uma qualidade editorial de revistas científicas.

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Criada de 1823, The Lancet é uma das mais influentes revistas de medicina do mundo. Imagem: Wikimedia

Para Brandão, a retração de artigos corresponde a um mecanismo de autocorreção da ciência “que busca garantir a qualidade e a credibilidade das evidências científicas”. O editor destaca que a característica que de fato sustenta as evidências científicas de um trabalho é a capacidade de outros pesquisadores reproduzirem os resultados seguindo as mesmas metodologias.

“O que acontece é que quando um artigo sai em revistas de grande prestígio, há uma classificação de que eles refletem a verdade. Mas já houve vários trabalhos publicados na Science e na Nature que não resistiram à reprodução” afirma. “Uma revista que não se preocupa em fazer retrações quando necessário está deixando de contribuir com a boa divulgação científica”.

Pré-publicações

Diferente dos artigos de revistas científicas, as pré-publicações são trabalhos divulgados em plataformas digitais de livre acesso que ainda não foram submetidos ou estão em processo de submissão de um periódico. Isso significa que esses estudo ainda não passaram pela revisão por pares e outros processos editorais. Eles também podem ser atualizados nas próprias plataformas de preprint.

A demanda por agilidade na difusão do conhecimento avalancou o uso desse modelo de publicação científica para trabalhos relacionados à pandemia. Um estudo publicado no repositório Biorxiv aponta que a publicação de preprints na plataforma MedArxiv passou de menos de 100 artigos semanais em janeiro, para mais de 400 preprints por semana entre abril e maio, dos quais cerca de 300 tratavam de temas acerca da Covid-19.

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Adeilton Brandão, editor-chefe da revista Memórias Fiocruz. Imagem: Fiocruz/Reprodução

A ascendência do modelo também impactou em políticas editoriais. Algumas revistas científicas passaram a aceitar artigos previamente divulgados em pré-publicações e aceleraram a revisão por pares dos trabalhos relacionados ao coronavírus. De acordo com o estudo, pré-publicações sobre a pandemia apresentam um tempo médio de revisão de até 25 dias inferior em comparação a preprints de outras temáticas.

Para Adeilton Brandão, os repositórios de pré-publicações cumprem o papel essencial de divulgar rapidamente a informação na pandemia. Ele argumenta que é preciso analisar os preprints com muito cuidado, mas destaca que o fato dos trabalhos ainda não passarem pela revisão por pares não significa que eles não são válidos.

O cientista aponta que os estudos de repositórios preprint também estão sujeitos ao crivo de outros pesquisadores. Segundo o editor, no entanto, ainda são necessárias plataformas tecnológicas que fortaleçam a conexão entre as pré-publicações e a comunidade científica. 

“Essas plataformas podem ser aplicativos que permitem a um grupo de especialista fazer essa correção sob demanda ou espontaneamente”, afirma o pesquisador. “Para que isso aconteça deve haver um incentivo. Voluntariamente, nenhum pesquisador vai ficar navegando revisando artigos alheios. As instituições de pesquisa poderiam criar esses incentivos”.