Nunca se prestou tanta atenção na ciência quanto agora. De repente, revistas científicas passaram a fazer parte das discussões de internet, e citações a artigos passaram a referendar posições sobre a Covid-19. No entanto, esse novo interesse na ciência ignora um ponto: nem toda produção é séria, e nem toda revista é confiável.

Para demonstrar com clareza esta questão, um grupo de franceses pregou uma peça na revista Asian Journal of Medicine and Health (AJMAH). A revista havia publicado em julho um artigo científico da pesquisadora Violaine Guérin que apresentava os benefícios do uso da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. O problema é que o artigo foi recusado em todas as revistas de mais renome, e a própria Guérin assumiu isso em entrevista.

Os pesquisadores suspeitaram que o AJMAH não era uma revista série e que se valia de práticas predatórias, cobrando dos cientistas para publicação dos artigos sem realizar a tão importante revisão por pares com a seriedade que é necessária. Então, eles fizeram o que qualquer cientista faz quando tem uma hipótese: realizaram testes e obtiveram provas. Os pesquisadores enviaram um artigo inusitado, relacionando o uso da hidroxicloroquina e azitromicina com uma redução nos acidentes com patinetes.

A premissa absurda, descrita no artigo “Sars-Cov-2 was Unexpectedly Deadlier than Push-scooters: Could Hydroxychloroquine be the Unique Solution?” (“Sars-Cov-2 foi inesperadamente mais letal que patinetes: poderia a hidroxicloroquina ser a solução única?”), também foi acompanhada de uma série de sinais óbvios de que se tratava de uma piada e mesmo assim o texto foi publicado. “Nos nossos estudos, hidroxicloroquina foi associada com menores chances de acidentes com patinetes. É urgente prescrever hidroxicloroquina para todos os usuários de patinetes”, diz a conclusão do artigo.

“A hidroxicloroquina é uma molécula barata e diabolicamente efetiva com um nível de segurança mais alto do que muitas outras drogas. Nós devemos usá-la mais, em todos os lugares, em todos os momentos no mundo inteiro. Porque a hidroxicloroquina é a heroína que o mundo merece, mas não a que ele precisa neste momento. Então os detratores vão caçá-la. Porque a hidroxicloroquina pode aguentar. Porque não é nossa heroína. É nossa guardiã silenciosa, nossa protetora vigilante. Uma cavaleira das trevas”, diz o artigo, extraindo citações diretamente do filme “Batman: O Cavaleiro das Trevas”.

Um dos autores listados nos créditos do artigo são Manis Javanica, nome científico do pangolim, animal que é creditado como um dos prováveis vetores para as primeiras transmissões do Sars-Cov-2 para humanos, e Nemo Macron, que é o nome do cachorro de estimação de Emmanuel Macron, presidente da França.

O artigo também faz algumas referências diretas ao estudo de Violaine Guérin na parte de “Agradecimentos”. “Agradecimentos a Violaine Guérin, Martine Wonner e sua equipe, que pagaram 55 mangos para serem publicados aqui, permitindo que descobríssemos novas revistas científicas e nos divertíssemos”.

O “estudo” também cita como referência um vídeo de Didier Raoult, pesquisador que iniciou a febre da hidroxicloroquina para tratamento da Covid-19 com um estudo com um pequeno grupo de pacientes divulgado em março e que se tornou a principal referência dos defensores do medicamento desde então. Nas citações, há um vídeo em que Raoult defendia, em fevereiro, que patinetes causam mais mortes do que a Covid-19, e que foi a inspiração do artigo.

Depois que a AJMAH virou piada na comunidade científica, o artigo foi retratado e retirado do ar “após relatos de fraudes científicas sérias”, o que poderia ficar óbvio com uma leitura prévia do conteúdo antes da publicação. Ainda assim, é possível encontrar o PDF para leitura e apreciação na internet.