Isolamento, distanciamento, testes em massa, máscara, álcool em gel… todas são medidas que ajudam a conter a propagação do coronavírus. No entanto, como avaliam os especialistas, a Covid-19 deve continuar circulando pelo mundo e provocar novos surtos enquanto não houver imunidade na maior parte da população, o que só deve acontecer quando houver uma vacina. Ou vacinas, no plural.

Diante do tamanho da crise causada pela Covid-19, a comunidade científica por todo o planeta está mobilizada para encontrar compostos que sejam capazes de gerar a imunidade contra o Sars-Cov-2 e está recebendo investimentos bilionários para que os resultados cheguem o mais rápido possível.

Há 10 vacinas em estágio mais avançado de desenvolvimento, que já entraram em fase de estudos clínicos, o que significa que as fórmulas já começaram a ser experimentadas em humanos.

Experimentos clínicos normalmente são compostos de três etapas: a primeira, feita em pequena escala, visa entender principalmente a segurança da vacina e os potenciais efeitos adversos. Caso ela se mostre segura, avança para a fase seguinte, com um grupo mais amplo, que já busca entender a capacidade de imunização do composto.

Tendo sucesso, os pesquisadores vão à fase três, com milhares de participantes divididos em dois grupos divididos aleatoriamente, tendo um deles recebido a vacina e o outro apenas um placebo ineficaz; nem pesquisadores nem pacientes sabem quem está em qual grupo. É quando os cientistas observam se há diferença nos resultados de pacientes de ambos os lados para atestar de forma definitiva se a vacina teve ou não sucesso. Só a partir daí parte-se para a vacinação da população.

Além das 10 vacinas mais avançadas, há outros 123 projetos reconhecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que ainda estão em fases pré-clínicas, com estudos in vitro ou em animais. Entre elas há duas vacinas brasileiras em desenvolvimento ativo.

Os projetos brasileiros

A OMS lista como vacinas candidatas o projeto desenvolvido na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais e o do Instituto do Coração (Incor), do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Cada uma aposta em uma abordagem diferente, apesar de ambas serem parceiras no desenvolvimento e estarem em comunicação direta.

O projeto do Incor aposta em uma técnica conhecida pela sigla VLP, que significa “partícula similar a um vírus”. Em vez de utilizar o próprio Sars-Cov-2 na composição da vacina, os pesquisadores criam um invólucro sem o material genético do vírus, tornando-o incapaz de se reproduzir e produzir doenças. Essa “casca”, no entanto, conta com as proteínas do vírus, em especial a proteína “Spike”, necessária para conseguir penetrar nas células, conectando-se aos receptores ACE-2. Assim, o organismo pode criar a proteção contra essa proteína, impedindo uma infecção pelo coronavírus real.

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Existem duas vacinas brasileiras em desenvolvimento ativo. Foto: Polina Tankilevitch/Pexels

Segundo Edécio da Cunha, chefe do Laboratório de Bioquímica do Incor, existem algumas vantagens importantes neste método. Ele já é utilizado com sucesso em outras vacinas, como a que combate o HPV e a Hepatite B e tem a vantagem de ser bastante seguro. Como não há o material genético do vírus para que ele se reproduza, não há o risco de que uma pessoa com imunidade mais baixa acabe desenvolvendo a doença, como pode acontecer em alguns casos raros de vacinas com vírus atenuados, como é o caso da poliomielite, sarampo.

O método também proporciona uma vantagem relevante em comparação com a técnica de vacina genética, que é o método utilizado pela Moderna, que chamou a atenção com seu anúncio de resultados promissores na fase 1 dos estudos clínicos.

Essa técnica, que injeta o RNA do vírus no organismo, faz com que o próprio corpo humano produza as proteínas virais e desenvolva a resposta imunológica. No entanto, não há nenhuma vacina em uso atualmente que utilize esse método, então a pesquisa seria totalmente pioneira. Além disso, uma desvantagem que pode pesar bastante contra ela, especialmente em uma situação como a do Brasil. Ela precisa ser refrigerada a temperaturas muito frias, o que complica o transporte do composto até populações remotas (imagine cidades ribeirinhas no Amazonas).

A OMS recomenda que vacinas possam ser armazenadas em temperatura ambiente ou em geladeira para que sua distribuição seja mais factível. Neste cenário, o VLP se mostra mais estável, como aponta Cunha, e consequentemente mais preparado para alcançar regiões afastadas.

A vacina da Fiocruz, por sua vez, utiliza outra mecânica. O método utiliza o que se chama de “vetor viral replicante”, o que implica a utilização de um vírus real, mas não exatamente o Sars-Cov-2.  O que os pesquisadores estão fazendo, neste caso, é adaptar os vírus influenza, causadores da gripe comum, para que também contenham o material genético que produz as proteínas do coronavírus, mas sendo incapaz de desenvolver a doença propriamente dita.

Com isso, os pesquisadores esperam que uma potencial vacina utilizando esse método seja capaz de imunizar não apenas contra a Covid-19, mas também contra a gripe comum.

A técnica conta com uma vantagem importante, quando se pensa na questão logística. Já existem fábricas produzindo a vacina contra a gripe, então seria mais simples adaptar as linhas de produção para iniciar a distribuição de uma fórmula contra a Covid-19 utilizando o método localmente.

Por que uma vacina brasileira?

Pelo que se vê no cenário atual, é pouco provável que as vacinas brasileiras sejam as primeiras a ficarem prontas, já que há candidatas em fase muito mais avançada de testes no mundo. O maior exemplo é o de Oxford, na Inglaterra, que já está avançando para a terceira fase dos estudos clínicos, com promessas de um composto pronto para este ano, o que seria um feito inédito na história da ciência.

No entanto, isso não elimina a necessidade de que os cientistas brasileiros deem prosseguimento nas pesquisas nacionais. Existem excelentes motivos para que os estudos continuem internamente.

Primeiramente, mesmo que as outras pesquisas estejam mais avançadas, não se sabe se elas terão sucesso nas etapas definitivas dos estudos clínicos. Elas podem ter efeitos colaterais que não foram descobertos nas etapas anteriores, e que só aparecem quando se amplia a amostragem, com uma base maior de pacientes vacinados. Da mesma forma, elas podem simplesmente se provar ineficazes.

Além disso, como explica Edécio da Cunha, é bastante provável que a primeira vacina contra a Covid-19 não tenha uma eficácia total. Na ausência de um composto melhor, especialmente diante do tamanho da crise, gerar imunidade em, por exemplo, apenas 50% das pessoas vacinadas é melhor do que deixar toda a população exposta ao vírus, mas ainda está longe do ideal.

Oxford tende a seguir por este caminho, como explica Cunha. Nos testes em macacos, a vacina britânica conseguiu desenvolver imunidade nos animais, mas apenas parcialmente, não alterando a quantidade de vírus no trato respiratório. Isso significa que os macacos vacinados foram protegidos de desenvolver a doença em seus corpos, evitando a pneumonia, mas ainda podem pegar o vírus e transmiti-lo para os outros ao seu redor.

A humanidade já viu casos de vacinas assim, imperfeitas, mas úteis. É o caso da Salk, criada nos anos 1950 contra a poliomielite, que protege o vacinado, mas não evita que o vírus se reproduza no intestino, o que permite que o infectado ainda transmita a doença para os outros pelas fezes. Anos depois, surgiu a vacina Sabin (a da gotinha), que, além da imunidade, também corta completamente a cadeia de transmissão.

Por fim, a questão vai além das questões de eficácia das primeiras vacinas. Quando se fala em vacinar 7 bilhões de pessoas, porque as únicas pessoas que possuem algum anticorpo contra o Sars-Cov-2 são os 3 milhões de recuperados da Covid-19 no mundo, a questão logística de produção e distribuição é chave. Não se sabe quantas doses poderão ser produzidas em um primeiro momento, nem de quantas aplicações serão necessárias para que o corpo produza imunidade, então mesmo que haja vacinas eficazes e seguras o suficiente ainda em 2020, é pouco provável que o mundo todo possa ser vacinado simultânea e imediatamente.

Neste sentido, o desenvolvimento de uma vacina do Brasil é uma questão de soberania, de segurança nacional, como reforça Cunha. Isso daria às autoridades de saúde brasileiras a capacidade de produzir e distribuir o composto internamente para a população, sem depender de questões geopolíticas e financeiras.

Uma vacina demora

Não espere uma vacina brasileira para este ano, no entanto. O composto de Oxford, que está avançando mais rapidamente, contou com uma vantagem grande: os pesquisadores já tinham boa parte do trabalho pronto para uso de um adenovírus alterado para combater a Mers, a Síndrome Respiratória do Oriente Médio, que também é causada por um coronavírus.

Esse conhecimento prévio deu aos pesquisadores a capacidade de queimar algumas etapas de testes, porque eles já tinham dados de imunogenicidade e de segurança do composto. Esse é um luxo que os pesquisadores não têm.

No caso da vacina do Incor, a equipe de pesquisa, formada por 16 pessoas, ainda na fase de experimentos in vitro. Os cientistas receberam amostras de sangue de 200 pacientes que se curaram de casos leves da Covid-19 e começaram a medir a resposta imune de seus anticorpos a diferentes pedaços do Sars-Cov-2. Cunha espera que dentro de três meses a pesquisa possa avançar para os testes em camundongos e chegar à fase clínica apenas na primeira metade de 2021.

A vacina da Fiocruz também se encontra em etapa similar. Os pesquisadores ainda estão fazendo os ajustes iniciais na bancada antes de avançar para os testes com animais, e não preveem estudos clínicos antes de 2021.

Os brasileiros também esbarram na questão de financiamento das pesquisas. Cunha nota que o projeto do Incor tem o apoio do Ministério da Ciência, Tecnologia, Comunicações e Inovações, mas a organização espera o apoio privado de empresas para poder acelerar os estudos, permitindo a realização de mais testes em paralelo, que podem ser feitas por este link. Enquanto isso, a Fiocruz reclamava de que estava fazendo suas pesquisas com recursos próprios, sem receber apoio federal, mesmo tendo direito a R$ 2 milhões por fazer parte da Rede Vírus.