“What Did Jack Do?”, curta de 2017 que a Netflix distribui agora em 2020, nos revela, em primeiro lugar, que a gigante do streaming não sentiu a menor necessidade de criar um título brasileiro ao filme. Talvez por entender que seu público algo não se importaria com isso. O que fez Jack é o que nos pergunta David Lynch, neste curta de 17 minutos que sucede nada menos que um de seus trabalhos mais elogiados, a terceira temporada de “Twin Peaks” (2017).

No curta, o próprio Lynch, cigarro no fim, terno e gravata, entra numa sala para interrogar um macaco suspeito de assassinato. OK, Jack é um macaco, vestido igualmente de terno e gravata. Já o percebemos no plano geral. Mas à primeira pergunta, o corte nos leva ao rosto desse macaco, de incrível expressividade, clamando sua inocência com o olhar vazio da ingenuidade. Lembra o olhar do réu em “Doze Homens e uma Sentença” (1957), longa de estreia de Sidney Lumet.

O preto e branco nos remete aos cinema noir dos anos 1940, mas o nonsense do interrogatório é puro Lynch, algo sobrando num entroncamento de Luis Buñuel com Alejandro Jodorowski, mas algumas pitadas do Lynch inicial, aquele de “Eraserhead” (1978) ou “O Homem Elefante” (1980).

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A Netflix não sentiu a necessidade de traduzir o título, mas poderia tratar melhor a tradução do diálogo. Lynch pergunta se o macaco saberia algo sobre pássaros, e a legenda informa “Pode me dizer com quem andas, Jack?”. Precisava quebrar a poética assim, de cara, logo no começo do interrogatório? Não afeta o curso da trama, mas, caramba!, não custa se ater ao que é falado.

Sigamos. A resposta do macaco surge com voz meio robótica. Temos um efeito de uma boca se movimentando digitalmente na parte inferior de seu rosto. Um efeito tosco, que Lynch não faz a menor questão de disfarçar. Por que não estranhamos? Porque a esta altura já sabemos que tudo é possível num filme de David Lynch. Mas a resposta do macaco, que aliás, é bem simpático, vem como uma pergunta, que é justamente “Por que pergunta?”. “Que diabos”, pensa o espectador mais sério. “E eu lá tenho tempo para perder com isso?”. Mas são só 17 minutos. Sigamos.

É curioso que Lynch reverbera seu personagem em “Twin Peaks – O Retorno”, o de um detetive, mas sem a surdez que fazia a graça na série. A graça aqui está toda no inusitado da situação e no suspeito símio. Outros dois personagens entram brevemente na narrativa: uma garçonete e a galinha chamada Toototabon. Um final ainda mais inusitado prova que não há limites para o diretor.

O exercício noir em preto e branco vale afinal pela curiosidade. Lynch tem feito inúmeras obras audiovisuais, geralmente curtas, disponibilizadas em seu site. Com a Netflix, une-se uma grife a outra.

 

Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema