Na evolução da cineasta Céline Sciamma, “Retrato de uma Jovem em Chamas” representa o ponto mais alto até aqui. Superior até que seu longa anterior, o ótimo “Garotas”. É possível subir mais? Talvez, mas não será fácil. O que a diretora atinge aqui é de um nível muito alto, comparável, dentro do cinema deste século, aos melhores filmes de Patricia Mazuy, Jean-Claude Brisseau e Marco Bellocchio.

Esses três nomes não foram escolhidos arbitrariamente. Com Mazuy (a de “Saint Cyr”) ela divide algumas das cenas mais sensíveis dentro de um drama histórico envolvendo mulheres em relação de poder. Esse jogo de poder se dá em dois níveis: com a pintora Marianne (Noémie Merlant) e a mãe da jovem Heloise (Valeria Golino), e também de Marianne com a própria Héloise (Adèle Haenel),  que inicialmente se recusa a ser retratada.

Com Jean-Claude Brisseau, há em comum uma faceta fantasmagórica que se revela, como em sonhos ou premonições, diante de Marianne. As aparições de Héloise, toda vestida de branco, prenunciam um destino infeliz para as duas jovens que se apaixonam no final do século 18 (quando mulher não era levada a sério nem na pintura, quanto mais num romance com outra mulher).

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Por fim, com Marco Bellocchio há a semelhança mais evidente no aspecto formal. Ninguém tinha conseguido fazer de maneira bem sucedida o tipo de corte que Bellocchio realizou nos momentos mais fortes de “A Hora da Religião e em pelo menos dois momentos de “Vincere. Ninguém, até agora. Num dos momentos mais belos de “Retrato”, as duas jovens mais Sophie (Luàna Bajrami), empregada da casa, vão a um acampamento de ciganos para tentar que Sophie aborte de um filho indesejado. Numa cantoria muito bonita à beira da fogueira, o vestido de Héloise começa a pegar fogo. Umas ciganas tratam logo de abafá-lo, mas ela cai no chão. Marianne se adianta para levantá-la, mas no movimento do estender de braços Sciamma corta para um outro momento, já durante o dia, em que Héloise puxa Marianne na praia e elas se beijam pela primeira vez. Quem não sente um arrepio nesse momento, com essa sucessão de planos, perdeu todo e qualquer sentido de forma cinematográfica, que Sciamma revela dominar como poucos. E não é o único em que essa habilidade pode ser percebida. na metade final de “Retrato”, esses momentos aparecem com maior frequência, revelando uma das coisas mais difíceis em cinema: domínio do tempo.

Também no jogo entre o mostrar e o esconder, em quando adiar o contracampo, quando sonegá-lo, e na colocação estratégica das elipses, Sciamma mostra que atingiu um nível muito alto, muito acima da média do cinema contemporâneo.

As referências acima citadas não significam uma tentativa de mostrar erudição. Servem para duas coisas:

a) mostrar que o referencial de Sciamma navega no melhor do cinema dos últimos vinte ou trinta anos, já que uma das características dos anos 1960 em diante é a referencialidade inescapável;

b) apontar caminhos para quem tiver gostado de “Retrato” procurar conhecer também esses outros cineastas que trabalham num nível formal e conceitual semelhante.

Reprodução

Engana-se quem acha que ter referenciais significa não ter uma assinatura própria, uma identidade forte. Pelo contrário. Se assim fosse, Jean-Luc Godard não seria um dos maiores autores do cinema. O referencial também pode ser acidental. Não há sinal de que a diretora tenha bebido na fonte de Bellocchio, Mazuy ou Brisseau. Mas certamente ela tem preocupações que se assemelham às deles, assim como é possível lembrar dos filmes de Rita Azevedo Gomes, principalmente “Vingança de uma Mulher” e “A Portuguesa”, e de “Inocência”, o belíssimo filme de Lucile Hadzihalilovic, diretora que é muito melhor que o marido, Gaspar Noé, apesar de viver à sonbra dele.

“Retrato de uma Jovem em Chamas” é o filme formalmente mais rigoroso de Sciamma até aqui (ela é a única roteirista também, ou seja, uma autora na mais rigorosa acepção da palavra). E o rigor está em perfeita adequação a um mundo, o da Bretanha no final do século 18, em que os códigos sociais são tão rígidos que sufocam a liberdade das pessoas (principalmente das mulheres). Sciamma não toma liberdades com esse passado aprisionador. Mas as respirações e os momentos fugazes em que Marianne e Héloise passaram juntas conferem uma vivacidade ao filme que por algum tempo sentimos a redoma quase ruir. Há ainda duas belíssimas cenas para o triunfo dessa ainda jovem diretora (tem 40 anos, o que para cinema não é nada): a da galeria de arte, triunfo secreto de Marianne (em duplo sentido), e a do concerto no teatro, tristeza secreta de Héloise. Nem tanto secreta, diga-se.

Aguardemos já com ansiedade o próximo filme de Céline Sciamma. Que não demore os cinco anos passados desde “Garotas”.

* Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema