O que terá levado “O Poço”, produção do País Basco para a Netflix espanhola, dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, ao primeiro posto entre os mais vistos no Brasil dentro da plataforma de streaming neste último fim de semana?

É fato que filmes de horror têm um apelo grande na cinefilia de qualquer país, e que os tempos de horror que vivemos parecem convidar a repercutir esse horror na experiência de ver um filme. Ainda assim, é surpreendente a grande procura por um filme espanhol, com atores e diretor desconhecidos. Só pode ser explicada por um grande boca-a-boca alimentado pelas redes sociais.

Seja como for, talvez o filme não alcançaria tão alto posto se não fosse também bom, construído sobre um enredo inventivo e levado por uma direção precisa, se não muito aprimorada. A não ser que fosse cheio de conceções ao gosto do grande público, o que não é o caso.

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Vejamos sua trama. Uma prisão vertical, chamada de Poço, mantem inúmeros andares com dois prisioneiros em cada. Uma plataforma oferece comida aos prisioneiros, mas começa no piso 1 e vai descendo até sabe-se lá onde (será revelado mais tarde no filme). Ou seja, quem está nos pisos abaixo do quinto ou sexto já pega praticamente só restos, e quem está abaixo do centésimo piso não pega nada a não ser fezes e urina.

Ao fim de um mês, todos os prisioneiros dormem pela ação de um gás e acordam em outro andar. Num dia nosso herói, Goreng (Ivan Massagué), pode estar no 48º estágio, no outro pode estar no 102º, ou no 6º, ou ainda no 77º. O aprendizado de Goreng conforme ele muda de andares, sobe e desce a estrutura social do local, e percebe o terror absoluto da falta do que comer, vai fazer com que ele enfim tome uma atitude.

O que testemunhamos é o inferno do humano, o quão baixo pode descer uma pessoa quando confinada e sem comida. Algo como “O Anjo Exterminador”, de Buñuel, só que mais grotesco. No tom surreal apocalíptico, lembra também o italiano “Cubo”, de Vincenzo Natali, embora Gaztelu-Urrutia seja muito mais hábil no crescendo aterrorizante de seu filme do que Natali.

A metáfora da sociedade capitalista já era um tanto óbvia antes do primeiro companheiro de cela de Goreng identificar nele ideais comunistas. No rico País Basco, e na rica Netflix, há espaço para uma produção como essa, que critica a engrenagem em que ricos se refestelam enquanto miseráveis comem restos ou não comem nada. Dá lucro e prestígio à plataforma, mas pode fazer o público pensar.

“O Poço” é mesmo uma grata surpresa, um raro encontro entre a sensibilidade do grande público, aquele que leva o filme a uma posição dianteira, e a execução de um filme rigoroso em sua proposta e engenhoso em sua narrativa. Não vai mudar o mundo porque egoístas continuarão sendo egoístas. Mas ao menos nos entrega cinema de qualidade.

* Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema