Sim, existe um padrão estético da Netflix. Não me refiro ao “N” gigante acompanhado por um “tudum” no início dos filmes produzidos pela gigante do streaming, nem ao desenho do site ou à navegação pelo catálogo de filmes. Refiro-me ao estilo que vemos nos filmes exclusivos da plataforma, um padrão que responde por algumas normas do que seria o “bem filmar”, mas com os devidos cuidados para evitar maneirismos que já não tivessem sido adotados pelo grande cinema ou por séries televisivas premiadas como “The Sopranos” ou “Mad Men”.
Esse padrão vem substituir um outro, mais nefasto a meu ver, que é o da câmera na mão, mas não só, na mão e balançando como se estivesse em uma mão embriagada, presente em 90% das séries televisivas da primeira década do século 21, de “24 Horas” a “Breaking Bad”, passando pelas variações de “Law and Order”, e por vários longas americanos ou de outros países. Isso acontece dentro ou fora do chamado “cinema de fluxo”, este, um parente próximo da estética “Law and Order”, um tanto mais centrado na ideia de câmera como mais um personagem.
Agora, temos algo que remete a um estilo scorseseano, mas cautelosamente sem os jump cuts (cortes com intervalo de tempo ou espaço muito curtos), os cortes no eixo, angulações bizarras da câmera e outras ousadias que Martin Scorsese aplica em seus filmes (menos em “O Irlandês”, porque a Netflix precisava de um Scorsese comportado, para alegria de muitos e a decepção de outros tantos).
O estilo scorseseano é marcado por uma câmera quase sempre móvel, geralmente elegante em seus movimentos, exceto por um ou outro momento de tensão em que ela é operada na mão ou realiza algum movimento inesperado, por um trabalho constante com planos-sequências que servem para nos colocar no meio de uma ação, interrompidos por cortes que surgem agressivos, por vezes até errados (como em “O Lobo de Wall Street”).
A Netflix toma esse estilo como seu ideal estético e o aplica (impõe? sugere?) em diversos filmes, tomando o cuidado para atenuá-lo ao ponto de ficar acadêmico (quando o diretor não tem muita força ou habilidade para driblar esse achatamento) ou suavemente fluídico (quando o diretor é mais tarimbado e consegue fazer o feijão com arroz ter um bom sabor). O que raramente iremos ver é inventividade no estilo, ousadia nas angulações e movimentações da câmera, afronta nos cortes: só a Nouvelle Vague mais adocicada, filtrada por Xavier Dolan e Christophe Honoré, pode servir como referência, jamais um “Acossado”, menos ainda um “Terra em Transe” (o primeiro filme mais estilisticamente disruptivo de Glauber Rocha).
Ou seja, o que a Netflix propõe esteticamente é um retorno à maneira de se filmar dos primeiros anos 1990, quando era necessário ter alguma noção de mise en scène para se dirigir um filme, e quando mesmo um filme com pinta de acadêmico podia, vez ou outra, decolar para a estratosfera. Por esse motivo, a incidência de filmes ruins entre os originais da Netflix é baixa. Normalmente eles são bem dirigidos e bem atuados, a ponto de corrigir roteiros frágeis.
Por outro lado, ainda é inexistente a presença de grandes filmes, tendo “O Irlandês” chegado mais perto disso, mas não perto o suficiente. Haverá a possibilidade de se atingir algo de sublime com tantos cuidados? Esperamos que sim.
* Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema