O Anjo Exterminador

Filme mexicano de Buñuel mostra confinamento misterioso muito antes do Covid-19
Redação04/04/2020 04h32, atualizada em 04/04/2020 09h04

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Não se trata de um filme de horror, mas de uma obra-prima do surrealismo cinematográfico, dirigida pelo diretor mais fiel aos preceitos surrealistas de André Breton. Esse diretor é Luis Buñuel e “O Anjo Exterminador” é um de seus filmes mais marcantes.

Realizado no México e lançado em 1962, o filme mostra um grupo de burgueses que, após um jantar, ficam confinados numa sala de estar por vários dias. As portas estão abertas, mas eles simplesmente não conseguem sair.

Não havia corona vírus no México dos anos 1960. O que Buñuel fala nesse filme magnânimo é da paralisia da burguesia e de como se tornam selvagens quando privados de bens como comida, banho e água.

A selvageria crescente mostrada pelo filme, aliás, compreende paredes arrebentadas para se saciar das águas do encanamento, plantas jogadas no chão para se aproveitar as águas dos vasos, e uma sorte de maledicências entre os convivas, desnudados em sua natureza humana.

Poucas vezes Buñuel foi tão cruel com a humanidade, e ao mesmo tempo, não é um filme pesado como parece. Deixa-se ver com facilidade, mesmo para quem resiste tolamente a filmes em preto e branco.

Existe sempre uma forte pulsão sexual prestes a explodir em cada personagem buñueliano. Em “O Anjo Exterminador”, essa pulsão explode de tal maneira que em determinado momento não nos assustamos mais com menções à conquista de uma moça virgem ou com a promiscuidade dos convidados. Em uma cena, o anfitrião lamenta o comportamento promíscuo dos convivas sem perceber que seu amigo seduz sua esposa bem na sua frente.

Além da transgressão sexual, Buñuel nos coloca no centro da degradação moral que se instala. Sentimo-nos participantes do confinamento, mesmo que existam cortes para os que estão fora da casa, na expectativa de alguma libertação. Para o diretor, essa degradação é apenas fruto da queda das cascas que insistem em esconder o lado instintivo (humano?) das pessoas.

Há uma habilidade assustadora em abordar uma situação limítrofe e expor seus personagens às provações que lhes eram proibidas pelo status social por eles alcançado. Ou seja, deparamo-nos com pessoas outrora distintas (ou limitadas por suas posições sociais), que, confinadas durante dias, veem extinguidos todos os seus freios morais. Nada mais importa, tudo é permitido. O adultério passa a ser às claras. As antipatias não são mais escondidas. Os desejos sexuais vêm à tona. É a aristocracia perdendo a máscara. E Buñuel diverte-se.

O crítico e cineasta francês François Truffaut dizia achar que Buñuel desprezava as pessoas, mas achava a vida divertida. Penso que Buñuel, no fundo, achava tudo muito divertido. E divertia-se até mesmo ao se aborrecer. Seus burgueses, assim como seus proletários, agem como escravos do acaso. Entregam-se às mais diversas esquisitices em nome de algo que nos escapa, mas que divertia o diretor.

Não que seja tudo gratuidade. Don Luis era um atento observador das fraquezas humanas. Além de colocar essas observações nos filmes, sentia grande prazer em temperá-las com sua imaginação onírica.

O surrealismo mesmo, em sua essência, consistia em inserir elementos absurdos num contexto perfeitamente realista. Buñuel revelava-se, então, como a personificação cinematográfica perfeita do surrealismo. E “O Anjo Exterminador” como sua criação mais surreal e libertária.

(o filme pode ser visto de graça, até 15 de abril, no canal de streaming do Belas Artes)

* Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema

Colaboração para o Olhar Digital

Redação é colaboração para o olhar digital no Olhar Digital