O Irlandês

Uma análise do novo longa de Martin Scorsese que estreia na Netflix
Redação27/11/2019 12h40

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Existe algo de diferente em O Irlandês. Obviamente, falo após uma primeira visão, já sabendo da necessidade de rever e de escrever um novo texto após essa revisão (ou as revisões). A grandiosidade do filme pede por isso. Sua ambição, idem. Corro, contudo, o risco de já alinhavar algumas ideias tendo visto o filme uma única vez. Por que não espero a revisão para escrever? Porque, apesar de mais prudente, eu perderia essa primeira impressão, e ultimamente tenho reparado que a força das primeiras impressões pode levar a equívocos, mas também a ideias que normalmente são auto bombardeadas já durante a revisão, formando segundas e terceiras impressões, que por vezes levam a ideias mais fracas. Tudo isso, desnecessário dizer, é especulativo. O interesse é lidar com sensibilidades distantes. E o filme já pode ser conferido na Netflix brasileira.

Como eu dizia, algo me soou diferente nessa primeira visão. É como se Martin Scorsese, diretor do filme com duração de minissérie, não precisasse lutar contra produtores e homens de dinheiro, uma vez que, supostamente, a Netflix lhe dera carta branca, mas com isso perdesse um pouco do entusiasmo que fazia brilharem filmes como Cassino ou Os Bons Companheiros, ou mesmo Gangues de Nova York, que saiu com duração muito menor que a pretendida pelo diretor.

Em muitos momentos de O Irlandês, parecemos estar diante de um produto televisivo, com um número incalculável de planos e contraplanos executados sem muito cuidado e uma insistência em certas piadas e situações que só funcionam no início, chegando a causar um certo enfado depois. Tomemos, por exemplo, a longa sequência em que Jimmy Hoffa (Al Pacino) é informado por Frank Sheeran (Robert De Niro) das intenções dos mafiosos, representados por Russell Bufalino (Joe Pesci), e responde a cada vez com um recado mais grosseiro, para desespero do pombo-correio Frank. Nessa longa sequência, os planos e contraplanos revelam certa displicência, visível na postura corporal da pessoa que escuta (e por isso aparece de costas).

Esse é um beabá da linguagem cinematográfica que a TV explorou sem piedade e muitas vezes sem rigor. Scorsese vinha sendo descuidado nos últimos filmes, mas agora me pareceu bem desligado, desconectado mesmo. O espectador pode não perceber que algo está falso, mas perceberá que algo não funciona tão bem. Até a violência é toda filmada com parcimônia, para não ferir o grande público. Mesmo nos tiros contra cabeças, filmados quase como pedidos de desculpas (em um deles, de fato, o pedido de desculpas acompanha o ato). É o anti-Cassino, o anti-Goodfellas. Pela primeira vez, Scorsese parece ter medo de filmar a violência. Nada disso é suficiente para derrotar um filme de três horas e meia com uma trama razoavelmente bem construída. Mas o deixa um pouco ferido.

Scorsese vinha adotando o formato scope, com a tela super retangular, desde O Cabo do Medo, de 1991. Este é o segundo longa de ficção, após A Invenção de Hugo Cabret, a utilizar a janela 1.85:1, mais próxima do 16:9 dos aparelhos de TV atuais. Não creio que Scorsese tenha relaxado por pensar num produto que será visto predominantemente numa TV (mas não seria sempre assim desde o final dos anos 1970, quando começou a ser comercializado o videocassete?). Creio que o problema esteja mais num convencionalismo que muitas vezes chega com a idade, e talvez com um certo cansaço. Busca-se o mais simples, o mais equilibrado, o mais limpo, em suma, o mais clássico, e o maneirista Scorsese não é um diretor afeito a isso.

Mas consegue alguns pontos, na condução dos atores, todos excelentes; no tema da velhice, que condiz com o andamento do filme a partir do segundo terço; e num plano final impressionante. Voltarei a ele daqui a alguns dias.

Colaboração para o Olhar Digital

Redação é colaboração para o olhar digital no Olhar Digital