Sempre que um filme de Clint Eastwood estreia em nossos cinemas, críticos e cinéfilos passam mais tempo discutindo sobre as inclinações político-ideológicas do diretor do que sobre sua arte. Passam, daí, a procurar indícios que confirmem essa posição e justificariam um suposto cancelamento de sua carreira (que ainda não aconteceu, suspeito, pela força de sua direção) determinado pela atual patrulha cinematográfica das redes sociais.

Ao mostrar homens comuns, banais, bobocas toda vida, que se tornaram heróis na vida real, teria ele caído em sua velha propaganda republicana e na tentativa de solidificar os valores conservadores da sociedade americana. Sejam esses heróis o atirador de elite de Sniper Americano, o piloto de avião de Sully, o jovem viajante de 15h17: Trem para Paris ou o ex-policial fracassado de O Caso Richard Jewell.

Mas nas artes as coisa não são tão simples. Existe algo inerente a ela que se chama ambiguidade, e que vem junto do espírito crítico que todo bom artista deve ter. Clint Eastwood é um desses artistas. Logo, não faz sentido discutir se ele é republicano e eleitor de Trump, se detesta o politicamente correto ou se é racista, se seus filmes nos dizem muito mais que suas posições políticas. Porque seus filmes, e ele tem plena consciência disso, estão cheios de autocrítica, que é a condição natural de quem é crítico. E dessa autocrítica já saiu alguns dos mais sólidos petardos antirracistas que se pode ver em cinema – vide Josey Wales e sua trupe de excluídos da sociedade, ou Gran Torino e a ligação do personagem interpretado por ele a uma nova família de outra etnia (existem outros exemplos).

Daí que Richard Jewell, o personagem, seja humanizado, sem que em um único momento sequer (a não ser, talvez, na entrevista no FBI) deixe de ser, aos olhos de qualquer pessoa de bom senso, um sujeito boçal. É como se Clint procurasse dizer: “ei, esse patriota boçal também é um ser humano”. E, no caso, também foi herói. Desnecessário dizer que desse mesmo modo, a repórter arrivista vivida por Olivia Wilde também se humaniza, pelo choro que indica arrependimento, no momento em que ela percebe ter ido longe demais. Como o agente Shaw, do FBI também se humaniza, pela dúvida em uns dois ou três planos e pela fraqueza (é, de fato, um agente meio incompetente).

E se precisamos procurar uma única personagem que não precisa ser humanizada porque já se apresenta de forma simpática, esta é a mãe de Richard Jewell, vivida por Kathy Bates. Há outra, a secretária do advogado fracassado vivido por Sam Rockwell, uma russa (vejam só) que é sua consciência moral e ao mesmo tempo a ponte entre a necessidade de justiça e a praticidade do sucesso profissional. Reclamam tanto da mulher retratada como arrivista (bem, o artigo existiu de fato, e quem senão alguém com caráter frágil, ao menos momentaneamente, poderia escrevê-lo?) que se esquecem de observar que as duas personagens mais simpáticas do filme são mulheres.

O que mais importa, neste caso, é que Clint Eastwood está num de seus momentos mais felizes como diretor. Ele imprime um ritmo preciso, quase perfeito, à trama escrita com habilidade por Billy Ray. Imprime também atuações excepcionais da maior parte do elenco, com óbvio destaque para Paul Walter Hauser, como Richard Jewell, e para as já mencionadas Olivia Wilde e Kathy Bates. Será difícil bater este como o melhor filme do ano.

Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema