Para competir com a toda poderosa Marvel, a DC escolheu para seu novo longa, Coringa, um outro caminho: do prestígio. Para isso apostou em Joaquin Phoenix (ator de filmes de James Gray e Paul Thomas Anderson) como ator principal. Só ele poderia interpretar o vilão psicopata, mais famoso nêmesis de Batman, à altura de Heath Ledger.
Todd Philips, o diretor, apostou na semelhança de Gothan City com Nova York e foi buscar em Martin Scorsese o álibi artístico que precisava. Comparações com Taxi Driver e O Rei da Comédia logo começaram a pipocar na internet, e o filme nos leva a isso ao escalar Robert De Niro como um comediante apresentador de TV, como era Jerry Lewis em O Rei da Comédia (no qual De Niro era o comediante amador e psicopata). Mas Philips esqueceu de buscar inspiração no estilo de Scorsese. E isso faz toda a diferença.
Nos dois filmes mencionados acima, o final em aberto e as inúmeras ambiguidades serviam para fazer com que a experiência do espectador fosse a mais rica possível. Em Taxi Driver, não sabemos até mesmo se o que vimos está na cabeça de Travis Bickle (De Niro) ou aconteceu realmente.
Philips, com medo de perder espectador nas ambiguidades, tratou de eliminá-las ao máximo. Assim, sabemos perfeitamente quando algo está na cabeça de Arthur Fleck, o futuro Coringa, ou é fato consumado. Um exemplo está na aparição da vizinha. Na relação de Arthur com essa personagem o filme revela de vez que tem receio de contar com a inteligência do espectador (ao contrário dos filmes de Scorsese em questão).
E a câmera é um capítulo à parte. Repete todos os cacoetes do cinema contemporâneo, com movimentos que se assemelham à visão subjetiva de um cachorro, o que anos atrás apelidei de câmera-cachorro, insistência em desfocadas estratégicas e tremulações discretas o suficiente para evocar distúrbio mental e incapaz de criar enquadramentos minimamente interessantes, exceto em um ou outro momento em que a frouxidão da câmera prejudica o que poderia ficar mais interessante. E se a câmera é ruim, as chances de naufrágio do filme são grandes.
E o naufrágio só não é completo porque há duas coisas que levantam o filme, embora não o salvam de uma grande decepção: a) a composição de Joaquin Phoenix, que por vezes parece levar o filme para o lado documental (difícil crer que o ator não tenha se identificado, de alguma forma, com seu personagem sofrido); b) a ideia de rebelião da classe média que cada vez tem menos poder de compra contra os ricos que cerceiam suas possibilidades de consumo. Ou seja, o capitalismo liberal prega o consumo, mas tira cada vez mais a classe média do consumismo que procura fomentar. Um tiro no pé que mais cedo ou mais tarde tende a terminar em revolta ou sufocamento de todas as liberdades. O mundo caminha para isso, infelizmente.
Esse dado faz de Coringa um filme muito atual, apesar de se passar no início dos anos 1980. As fachadas das salas de cinema que vemos em cena apontam para diversos tempos possíveis, como podemos observar pelos filmes citados nas marquises, dos anos 1930 (Tempos Modernos) a 1981 (As Duas Faces de Zorro), passando pelos anos 1950 (A Montanha dos Sete Abutres), entre outras piscadelas da direção. Ou seja, Todd Philips quer mostrar que fez a lição de casa, mas sua câmera entrega o tempo todo que ele ficou de recuperação.