“I gave him life” (Eu lhe dei vida). Eis a fala marcante do cientista Herbert West, personagem vivido por Jeffrey Combs em “Re-Animator”, primeiro longa de Stuart Gordon (falecido na terça, 24 de março). Ele diz isso após ser encontrado com o cadáver de seu companheiro de pesquisa.

Baseado em H.P. Lovecraft, o filme fala da tentativa de fazer reviver criaturas mortas e faz parte da série de horror americano que surgiu após o horror da Nova Hollywood, de “O Bebê de Rosemary” (Roman Polanski, 1968), “O Exorcista” (William Friedkin, 1973) e os dois primeiros filmes da série de zumbi de George A. Romero, “A Noite dos Mortos Vivos” (1968) e “O Despertar dos Mortos” (1978).

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Nessa nova onda, “Re-Animator” foi um dos filmes-chaves, ao lado de “Uma Noite Alucinante” (Sam Raimi, 1983), “A Hora do Pesadelo” (Wes Craven, 1984) e “A Hora do Espanto” (Tom Holland, 1985), tendo como peças importantes e intermediárias os filmes de horror realizados por Joe Dante, John Landis e David Cronenberg (este principalmente no cinema canadense, mas com conexões americanas bem evidentes), entre outros menos celebrados.

Quase todos os diretores intermediários tiveram o mesmo destino dos da Nova Hollywood, ou seja, carreiras mais longevas e bem sucedidas dentro de um filão de cinema autoral que promovia uma alternância de gêneros, relidos e modernizados conforme as novas sensibilidades. Romero e Cronenberg ficaram mais próximos do horror.

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Gordon, como Craven e Holland, sofreram com baixos orçamentos e a incompreensão da crítica, além de progressivamente terem suas forças poéticas diluídas pelas concessões necessárias para continuar filmado. Diluídas, mas não destruídas, pois é sempre possível encontrar traços da genialidade demonstrada nos principais filmes desses diretores.

Após “Re-Animator”, Gordon prosseguiu na veia lovecraftiana em “Do Além” (1986), tão bom quanto sua estreia. Salvo engano, seu filme de maior orçamento (nada muito vultuoso, vale dizer, mas bem maior que o de “Re-Animator”), “Do Além” é sobre cientistas malucos que desenvolvem uma máquina, chamada de ressonador, capaz de estimular uma parte não utilizada do cérebro e acabam despertando forças de uma outra dimensão (a da mente humana ou algo sobrenatural?). Um deles, o líder do experimento, desaparece, aparentemente devorado por um monstro; o outro fica aparentemente insano. Uma psicanalista, vivida por Barbara Crampton, resolve investigar o caso e se envolve tanto com o paciente quanto com o monstro que ele ajudou a criar.

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Dentro do horror mais ortodoxo, “Bonecas Macabras” (1987), realizado antes, mas terminado após “Do Além”, é o filme no qual os traços fortes de ficção científica dos dois primeiros estão praticamente ausentes. Nele fica mais evidente uma certa misantropia de Gordon, uma vez que alguns dos personagens são desprezíveis (das punks egoístas ao marido interesseiro, dos idosos sinistros (embora estes tenham lá seus códigos morais) à socialite esnobe (interpretada por Purdy-Gordon).

“Bonecas Macabras” ou “Dolls”, com o qual é mais conhecido, mesmo no Brasil, fecha a parte mais interessante da carreira de Stuart Gordon. Esses três primeiros longas foram produzidos por Brian Yuzna (que logo depois despontaria também como diretor, embora menos prolífico). São os melhores que dirigiu, aqueles que ainda hoje despertam maior entusiasmo nos inúmeros fãs de horror, lovecraftianos ou não.

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Nos lovecraftianos, encontramos uma ressonância com os primeiros de Cronenberg: baixo orçamento; horror crescente e cada vez mais gosmento e sanguinolento; e, principalmente, a mesma trupe de atores, prática de que Gordon já era entusiasta em seu trabalho com o teatro nos anos 1970 – o trio Jeffrey Combs, Barbara Crampton e sua esposa, Carolyn Purdy-Gordon está nos dois filmes. Em “Do Além”, a trupe é enriquecida pelo romeriano Ken Foree, ator principal em “O Despertar dos Mortos”, estabelecendo assim a ligação de gerações do horror cinematográfico americano.

Da carreira posterior de Gordon, dá para destacar, antes de uma revisão necessária (rever é sempre essencial, devemos sempre lembrar), dois filmes do princípio dos anos 1990: “O Poço e o Pêndulo” (1991), baseado em Edgar Allan Poe, e “A Fortaleza” (1992), filme que usa o canastrão Christopher Lambert de maneira inteligente. Ambos, porém, não alcançam o mesmo nível dos três primeiros longas.

* Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema