O especial do Natal 2019 feito pelo grupo de humor Porta dos Fundos, disponível na Netflix, pega carona no título do clássico de Martin Scorsese, A Última Tentação de Cristo (e do livro explosivo de Nikos Kazantzakis que deu origem ao filme). Se o longa de Scorsese foi boicotado pelos cristãos na época por mostrar a tentação carnal de Cristo enquanto ele delirava na cruz, o média da Porta dos Fundos, intitulado A Primeira Tentação de Cristo, mostra um Cristo homossexual, antes de se tornar o assexuado pregador das palavras de Deus.
Cristo é Gregório Duvivier, enquanto o namorado que conheceu durante os 40 dias no deserto, chamado Orlando, é interpretado por Fábio Porchat (também roteirista). Apesar de brincar com um certo estereótipo do homossexual que diz mais respeito a uma representação dos anos 1980 do que de hoje, a atuação de Porchat provoca algum riso.
O que o grupo pretende é mostrar uma versão alternativa da vida de Cristo, nos mesmos moldes de A Vida de Brian (1979), do grupo inglês Monty Python. Claro está que a Porta dos Fundos não chega aos pés do Monty Python. A Primeira Tentação de Cristo é mais uma prova disso, embora a chave para o entendimento do especial seja mesmo o filme de Scorsese.
Com essa sátira, ressurge também a velha discussão sobre os limites do humor. Gregório Duvivier, um dos portas, defende que para muita gente (o pessoal que costuma atacar sem muito critério tudo que lembra o politicamente correto e dizer que o mundo está chato) é válido fazer piada com pretos, gays e pobres, mas não pode fazer piada com religião (no caso, com religiões, já que outras religiões são satirizadas). Outros já se apressam em repetir que vale tudo no humor, e o limite é a graça.
Tendo a me aproximar dessa última formulação. Mas há um porém: é muito diferente fazer humor com minorias que sofrem preconceitos todos os dias e historicamente do que com as crenças, costumes ou atitudes das pessoas. É basicamente a mesma diferença entre alertar uma pessoa por ela estar sendo burra e chamá-la de burra. Numa ocasião se alerta para uma condição temporária, noutra, para a essência da pessoa. O limite do humor é mesmo sua graça. Mas quem acha graça em piadas que ridicularizam negros, homossexuais e demais vítimas de preconceitos, hoje, quando a conscientização é muito maior, tem algum desvio sério de caráter.
Tudo isso para reiterar que A Primeira Tentação de Cristo é, afinal, sem graça. Tenderia a ser esquecido, não fosse a publicidade de censores e demais hipócritas (o que não é exclusividade da direita, mas é uma prática mais propensa a ser encontrada nesse espectro ideológico). O texto procura transpor a linguagem para o carioca atual. Os personagens parecem garotos de praia com suas gírias e gingas. Poderia funcionar, mas não acontece. Algumas situações são nível quinta série de provocação. A realidade consegue ser muito mais tragicômica.
Para piorar, é dirigido sem muita adequação por Rodrigo Van Der Put (diretor também do especial de natal de 2018, Se Beber não Ceie), com cortes apressados prejudicando o humor e angulações de câmera que às vezes atrapalham as atuações. A direção contribui para a falta de graça da maior parte das piadas. Porque fazer humor não é fácil. Exige habilidade no texto, nas interpretações e na direção. Neste especial, só um desses pilares foi apropriadamente abastecido.