Uma surpresa da Netflix é o especial infantil de John Mulaney, intitulado, sugestivamente, ‘John Mulaney & the Sack Lunch Bunch’ (algo como o “grupo do saco de almoço”, embora a tradução elimine a graça da língua original) e dirigido pelo galês Rhys Thomas.

John Mulaney tem sido roteirista do longevo e ainda prestigiado humorístico ‘Saturday Night Live’ desde 2008, e aqui, segundo suas próprias palavras, resolveu fazer um especial infantil diferente daqueles que vê, que, segundo ele, seriam sem graça.

O que nos faz retornar à digressão sobre o estatuto da Netflix em nossas vidas. As TVs modernas já vem com o aplicativo instalado, e no controle remoto basta apertar a tecla Netflix. Ter Netflix, hoje, é quase como ter a Globo nos anos 1980. O que nos lembra que um filme produzido diretamente para a Netflix é, de fato, um telefilme. Mas a Netflix, por outro lado, aproximou as instâncias televisivas e cinematográficas – como o fizeram cineastas como Rossellini e Fassbinder, entre outros, nos anos 1960 e 70. E ninguém seria louco de chamar ‘Roma’ ou ‘O Irlandês’, goste-se ou não deles, de telefilmes. Daí que o próprio estatuto do telefilme mudou novamente, ainda mais porque passamos a consumir muito mais cinema em casa.

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Mas ‘John Mulaney & The Sack Lunch Bunch’ se apresenta como um “especial de TV” (é assim que ele está descrito no imdb, banco de dados da cinefilia). E ao mesmo tempo ensaia algumas liberdades, talvez propositalmente, com o formato “especial de TV”. De modo que temos mais um produto fronteiriço, que por mais que esteja muito mais próximo do lado TV do que do lado cinema, é ainda assim uma pedra no meio do caminho de quem precisa classificar tudo.

O melhor de tudo é que assistimos ao especial com interesse, por vezes lembrando de tantos especiais infantis do passado (‘Vila Sésamo’, ‘Muppet Show’, com os quais ele obviamente dialoga) e ao mesmo tempo entendendo o que mudou de uma época para outra, no tipo de comédia, mais do que nas músicas (ao menos neste tipo de show).

O que mudou mesmo é que as crianças parecem menos inocentes. Por vezes, parecem muito mais espertas do que nós, adultos (e me segurei para não colocar “são” no lugar de “parecem”, nas duas frases acima). Isto nos dá um certo alento. Se elas irão herdar um mundo estragado por nós, talvez saibam consertá-lo, pois estarão mais preparadas crescendo tendo nossos erros como parâmetros. O que nos indica o maior valor deste especial: as crianças nos ensinam muito, e nos fazem pensar. Basta que atentemos para o que elas têm a dizer.

Formalmente, o especial remete à TV dos anos 1990. São diversos sketches, a maioria dos quais números musicais (composições quase sempre boas de Eli Bolin). Um dos melhores é a pesquisa para o lançamento de um filme, principalmente pelas reações das crianças. Nos sketches musicais, difícil apontar um destaque, pois todos são muito bem dirigidos (com influências de Vincente Minnelli e George Sidney, como deveria ser). Talvez a melhor equação entre música e direção esteja num dos últimos números, com a canção “I Saw A White Lady Standing on the Street Just Sobbing, and I Think About It Once A Week”.

Apesar de sua irregularidade (condição habitual do produto episódico) e de alguns temas serem praticamente exclusivos para plateias dos EUA, ‘John Mulaney & The Sack Lunch Bunch’ é um especial televisivo que vale ser conferido.