A rigor, comemorou-se no dia 20 de janeiro o centenário de um dos maiores cineastas de todos os tempos: Federico Fellini, cujo nome se tornou adjetivo. Mas a celebração irá se prolongar por todo este ano conturbado, o que é justo. Precisamos guardar o que é bom, e um mestre com uma carreira desse tamanho precisa mesmo de uma celebração mais longa. Comemoremos, então, o ano do centenário de Federico Fellini. Há uma mostra iniciando no CCBB-SP no dia 26 de fevereiro e no Cinesesc um pouco depois, indo depois para os CCBBs de Rio de Janeiro e Brasília. Vale a pena ir atrás de seus filmes para não passar a comemoração em branco.
O cineasta nasceu profissionalmente junto com o neorrealismo italiano, do qual participou sobretudo como roteirista de alguns filmes importantes como “Paisà” (Roberto Rossellini, 1946) e “O Caminho da Esperança” (Pietro Germi, 1950), entre outros, antes de iniciar uma sólida carreira de diretor. Ao primeiro filme, “Mulheres e Luzes” (1950), dividido com Alberto Lattuada, seguiu-se o primeiro filme solo, “Abismo de um Sonho” (1952), e a primeira obra-prima, “Os Boas Vidas” (1953), seu segundo longa e meio.
Nessa fase ainda contam os excepcionais “A Estrada da Vida” (1954), “A Trapaça” (1955) e “Noites de Cabíria” (1957), o primeiro e o terceiro reveladores da uma atriz excepcional, sua esposa Giulietta Masina.
Com “A Doce Vida” (1960) inicia-se uma nova fase em sua carreira, a da ultrapassagem do neorrealismo. A loucura e o onirismo (já presentes nos filmes anteriores) passariam a ocupar mais espaço em seus filmes, em sintonia com a obra de outro monstro italiano, Michelangelo Antonioni, que no início dos anos 1960 desenvolvia a sua “Trilogia da Incomunicabilidade” (“A Aventura”, “A Noite” e “O Eclipse”).
Era a maior fase do cinema italiano de todos os tempos, com uma verdadeira explosão de autores com filmografias inesquecíveis. O neorrealismo era radicalizado por alguns, ultrapassado por outros, mas sempre servindo como uma base histórica rica para um novo tipo de abordagem realista, e também para a exploração de uma linguagem poética, rica em nuances e delírios.
Como Fellini responde a esse tempo mágico? Com um genial longa de crise: “Oito e Meio” (1963). Filme que pode ser também considerado um novo ponto de virada, a partir do qual Fellini falaria muito de si mesmo e de suas obsessões e medos. Não é um pecado, mas foi encarado assim por muitos. São inúmeros os críticos que consideram “Oito e Meio” como o início de sua decadência. Nada mais equivocado.
Se “Julieta dos Espíritos” (1965), o longa seguinte, compensa seu girar em falso com uma plasticidade exuberante (é seu primeiro longa em cores), é com “Satyricon” (1969), provavelmente sua obra maior, que o diretor inicia um estudo sobre Roma em todos os tempos. O final evidencia a paridade com um filme posterior, “Roma” (1972), outro filme inesquecível. São, de fato, filmes gêmeos, a meu ver, os dois melhores de toda a carreira de Fellini.
Quase tão bom quanto esses é “Amarcord” (1974), no qual Fellini volta a olhar para o seu umbigo. São memórias de Rimini, cidade onde nasceu, e dos tipos pitorescos que encontrava por lá. O título remete ao dialeto riminiano, e quer dizer “Eu me Lembro”. Com essa lembrança fílmica, Fellini expurga suas obsessões pessoais e pode voltar ao mundo dos sonhos desenvolvido em “Oito e Meio” (também, de certo modo, um expurgo de traumas pessoais e obsessões).
“Casanova” (1976) é a brilhante e onírica ode ao decadentismo, como só Visconti seria capaz de igualar. Curiosamente, 1976 é a data do falecimento de Visconti, cujo último filme, “O Inocente” (1976), trazia o amargor de um conquistador decadente.
Na reta final de sua carreira, Fellini torna-se irregular. Apenas um filme faz jus ao melhor de sua obra até “Casanova”. Trata-se de “E La Nave Va” (1983), homenagem à ópera e ao artifício cinematográfico a um só tempo, um dos filmes mais belos da década de 1980. Há ainda “Ensaio de Orquestra” (1978), delicioso divertimento, e “Entrevista” (1987), surpreendente filme de memórias. Os demais, apesar de dignos de sua assinatura, não chegam a fazer cócegas em suas obras-primas.
* Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema