Astrofísicos se dividem em relação a candidata à matéria escura

Um novo estudo joga um balde de água fria nos pesquisadores que apostavam nos 'neutrinos inertes' como formadores da misteriosa substância. Mas nem todos estão convencidos dos resultados
Renato Mota27/03/2020 19h11

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Está acontecendo uma verdadeira rinha de astrofísicos em torno de um tema que já é bastante controverso: a composição da matéria escura. Um estudo publicado na revista Science se propõe a descartar o neutrino inerte como candidato a partícula formadora desse elemento misterioso do universo, mas o resultado da pesquisa tem dividido opiniões entre os cientistas.

Tudo começou em 2014, quando observações de galáxias próximas e do centro de nossa própria Via Láctea revelaram um fraco brilho de raios-x com uma energia específica, 3,5 kilo-elétron-volts (keV). A pesquisa atribuiu essa emissão ao decaimento de neutrinos inertes com uma massa de 7 keV ao atravessar as galáxias estudadas.

O neutrino inerte, ou neutrino estéril, é uma partícula hipotética. Os neutrinos normais, apesar de abundantes no Universo, são muito difíceis de serem detectadas. Embora semelhantes aos elétrons, elas não possuem carga e contam com muita pouca massa, por isso mal interagem com a matéria normal. Um neutrino estéril, segundo os físicos, não consegue interagir com a matéria normal, exceto talvez gravitacionalmente.

Muito raramente, um neutrino inerte se decompõe em um neutrino comum e um raio-x, que teria uma energia igual a metade da massa do neutrino estéril – muito fraca, mas detectável. Essas características tornaram essas partículas candidatas a formar a matéria escura, uma substância invisível cuja imensa gravidade ajuda manter estrelas dentro do disco galáctico, apesar da velocidade em que elas orbitam.

Reprodução

As coisas nas bordas externas das galáxias se movem mais rápido do que deveriam se estivessem sob a influência gravitacional da matéria normal. E as lentes gravitacionais – do jeito que a gravidade curva o caminho da luz – são mais fortes do que esperávamos nessas regiões. A partir desses efeitos, os astrônomos calculam que cerca de 85% da matéria no Universo é matéria escura.

O estudo de 2014 acendeu a fagulha da esperança nos físicos, de encontrar uma evidência da natureza microscópica da matéria escura. Porém, estudos de acompanhamento – um em 2016 em uma galáxia anã a 260 mil anos-luz de distância e outro em 2017 em um aglomerado de galáxias a 240 milhões de anos-luz de distância – não encontraram a tal emissão de raios-x dos neutrinos inertes.

Então, uma equipe de pesquisadores decidiu olhar um pouco mais de perto. A Via Láctea tem uma “borda” substancial de matéria escura; portanto, se houver neutrinos inertes em decomposição, eles deverão ser detectáveis ao redor da nossa galáxia. Analisando 20 anos de dados brutos de raios-x do espaço vazio em torno da Via Láctea, os cientistas procuraram sinais de 3,5 KeV. Eles não encontraram nenhum.

“Nossa descoberta não significa que a matéria escura não seja um neutrino estéril, mas significa que – ao contrário do que foi afirmado em 2014 – não há evidências experimentais até o momento que apontem para sua existência”, explicou o físico Ben Safdi, da Universidade de Michigan.

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Mas nem todo mundo está convencido. O físico Alexey Boyarsky, da Universidade de Leiden, na Holanda, publicou uma pesquisa semelhante, usando as mesmas ontes, e que afirma que encontrou a linha de 3,5 KeV. “Acho que este artigo está errado”, disse ele sobre a nova pesquisa à revista Science. Outro físico teórico, Kevork Abazajian, da Universidade da Califórnia, diz que análise de Safdi é muito falha. “Para ser sincero, esse é um dos piores casos de escolha de dados que eu já vi”, disse ele à Science.

Os diferentes resultados podem ser o produto das duas diferentes técnicas de análise; ambas as equipes acreditam que seu método é superior – embora o estudo de Boyarsky ainda não tenha sido revisado por pares. Como nossa galáxia é preenchida com um fino gás ionizado, o céu emite raios-x, que podem atingir picos de energia específica mesmo sem a interferência da matéria escura.

O próprio telescópio XMM-Newton – fonte dos dados usados nas duas pesquisas – também pode brilhar e emitir raios-x. E algumas emissões ainda vêm de além da nossa galáxia. Para ver um brilho de 3,5 keV da matéria escura, os pesquisadores devem filtrá-lo dessas interferências de fundo.

Para fazer isso, Boyarsky e sua equipe analisaram todo o espectro de energias de raios-X que o XMM-Newton pode detectar, modelaram todo o fundo e subtraíram-no dos dados. O físico afirma que removeu picos conhecidos em 3,3 keV e 3,7 keV para revelar o pico inexplicável de 3,5 keV.

Safdi adotou uma abordagem diferente: emprestando técnicas estatísticas desenvolvidas em aceleradores de partículas, eles analisaram o espectro de cada imagem separadamente e escrutinaram dados apenas em uma faixa muito mais estreita. Boyarsky acredita que, como Sadfi e sua equipe não eliminaram os outros dois picos de fundo, eles podem ter confundido um platô criado pelos três picos sobrepostos por um espectro plano.

O físico da Universidade de Michigan se defende afirmando que sua equipe descobriu que subtrair os outros picos e ampliar a janela de energia não altera o resultado. “Se existir um pico de 3,5 keV”, ele diz, “a técnica mais sofisticada de minha equipe o teria revelado”.

Boyarsky está tentando publicar sua análise. Um jornal de física recusou, dizendo que não era suficientemente “interessante”, diz ele. Agora, o físico enviará o estudo à Science. “Não me importo se for publicado, mas gostaria que fosse revisto por pares”, diz ele. “Eles não podem dizer que não é interessante.”

Já Sadfi espera que o seu trabalho incentive outros pesquisadores a continuar as buscas. “Embora esse trabalho, infelizmente, jogue água fria no que parecia ser a primeira evidência da natureza microscópica da matéria escura, ele abre uma nova abordagem para procurar matéria escura que pode levar a uma descoberta em futuro próximo”.

Via: Science/Science Alert

Editor(a)

Renato Mota é editor(a) no Olhar Digital