Orson Welles é um dos diretores a quem melhor cabe a expressão “gênio injustiçado”. Fez apenas um filme inteiramente do jeito que queria, seu primeiro longa, “Cidadão Kane” (1941). Em todos os outros teve de rebolar para não ver seus filhos muito desfigurados pelo peso da máquina hollywoodiana ou de algum outro produtor (sempre uma figura tirânica para gênios incompreendidos), e na maioria das vezes perdeu.

Ainda assim, a máquina hollywoodiana era gerida por gente de cinema, pessoas que entendiam da profissão de se fazer filmes. Tinham ambições comerciais e temiam experimentações, mas queriam que o filme saísse bom, e geralmente tinham também alguma ambição artística. Isso é uma diferença e tanto, e explica por que “O Estranho” (1946) seja tão bom apesar de ter sido um projeto em que Welles praticamente não teve liberdade.

Sim, o longa retrata um mundo antigo. Melhor que o de hoje em um aspecto: nazistas eram perseguidos e presos, em vez de sairem por aí ostentando sua burrice em público, como hoje. Pior em um outro aspecto de suma importância: a posição da mulher na sociedade ainda mais patriarcal.

Esses dois aspectos formam a base deste noir tétrico sobre um detetive de uma comissão contra criminosos de guerra (Edward G. Robinson) que vai atrás de um nazista (Orson Welles) disfarçado de professor de história em uma pequena cidade dos Estados Unidos. O nazista casa-se com a filha (Loretta Young) de um juíz (Philip Merivale), mas o passado não o deixa em paz.

“O Estranho” foi o primeiro filme comercial americano a mostrar cenas de um campo de concentração. Isso, em 1946, um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, obviamente acrescentava um pouco mais de horror à trama para o público daqueles tempos.

E se o mundo que o filme mostra é antigo, sua forma ainda impressiona. A começar pelos trejeitos maneiristas de Welles, sobretudo nos primeiros minutos, com movimentos ousados de câmera e uso das sombras para maior expressividade. De fato, como todos os filmes de Welles (ou pelo menos todos em preto e branco), este também é narrado com uma luz intensamente dramática, na melhor escola Murnau / John Ford, assumindo a filiação do expressionismo alemão que é fundamental ao filme noir e a Hollywood dos anos 1930 aos 1950.

Se algum jovem estudante de cinema de hoje quiser entender como se narra visualmente com força, melhor que ele assista a este filme, ou a qualquer outro de Welles, sempre um mestre da encenação, do que algum filme de um diretor moderninho atual, que provavelmente não tem ideia do que fazer com a câmera (vide 90% dos filmes de ação dos últimos vinte anos.

Para encerrar, duas curiosidades. “O Estranho” é o filme de que Welles menos gosta entre todos que dirigiu. Mas é também seu maior sucesso comercial, o único que deu lucro em sua passagem original pelos cinemas. A máquina hollywoodiana, afinal, sabia como atrair grande parte do público.

 

* Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema