Cada crítico julga segundo sua formação, sua vivência, sua maneira de entender o cinema. O que significa que um crítico tem necessariamente uma ideia de como é o melhor cinema, para então eregir seu panteão, seus filmes de preferência. O crítico que não tem essa ideia tende a gostar de tudo, ou seja, a ser acrítico. Porque criticar é colocar em crise, é julgar, atribuir valor.

Obviamente, o crítico não pode se fechar às novidades, ou àquilo que está em desencontro com sua ideia de bom cinema. Um exemplo: gosto de filmes com um trabalho de câmera mais pensado, em tripé, carrinho ou na mão, tanto faz, desde que não abdique do enquadramento, de pensar nos limites da tela e neles inserir os atores e os objetos de cena, pensando também nas distâncias entre a lente e os atores e objetos, bem como entre um ator e outro. Nesse sentido, é mais difícil conseguir isso com a câmera na mão. Mas os grandes conseguiam: Glauber, Pasolini, Cassavetes.

O que não quer dizer que eu não possa admirar um filme que não tenha essa preocupação, algo que tem sido bem comum nos últimos vinte anos. Dentro da chamada câmera livre, do cinema de fluxo, em que o enquadramento é sempre fugidio, incerto e inconstante, existem inúmeros bons filmes, e até grandes filmes. Mas é possível dizer que, por contrariar minha ideia de grande cinema, é mais difícil um filme com essa proposta de fluxo me agradar do que um filme que pense o enquadramento, mesmo sem o rigor de um Manoel de Oliveira ou um Bergman. Forma não é tudo, mas é importante.

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Como resumiu um amigo crítico certa vez, de um filme que apresente a minha ideia de bom cinema eu posso gostar até um quarto ou quinto nível. Mas de um filme que apresente a ideia contrária eu posso gostar somente até um segundo nível, no máximo. Ou seja, amo o cinema de John Cassavetes, apesar de ele ser a base para todos os cineastas que pretendam trabalhar com uma câmera na mão e enquadramentos incertos, porque ele, apesar de deixar a câmera livre, ainda conseguia pensar nos enquadramentos de maneira a privilegiar o trabalho dos atores e atrizes com os quais filmou, de colocá-los em um espaço que respondesse à sua maneira de entender o mundo, as pessoas e seus gestos. Ele está num primeiro nível, e é um dos grandes diretores da história do cinema, a meu ver.

Se há um favor que a Netflix fez ao mundo foi proporcionar uma volta ao cinema que privilegia o quadro em vez do fluxo, o enquadramento bem pensado em vez da incertitude. Pensei nisso ao ver o recente “Entre Realidades”, que, como tantas outras produções exclusivas da plataforma, boas ou ruins, propiciam uma volta a esse tipo de cinema que era predominante nos anos 1990.

Não se trata de conservadorismo pura e simplesmente, ainda que a ideia de conservadorismo nas artes não seja de todo nociva, pois sempre há algo a se conservar na história da arte, e os grandes mestres, de Caravaggio a Turner, de Godard a Scorsese, entenderam muito bem isso. Trata-se, pelo contrário, de identificar na opção pelo fluxo um beco sem saída que já se tornou academicismo quando mal realizada, o que tem acontecido com frequência. Ou seja, academicismo por academicismo, melhor o de “Entre Realidades” que o de “O Jovem Ahmed“.

* Sérgio Alpendre é crítico e professor de cinema