Com a tecnologia cada vez mais dominando as relações humanas e a sociedade, aliados aos seus inúmeros avanços, além das ferramentas e facilidades por ela proporcionadas, deve se exigir-se do poder público – mais engessado por natureza – uma compulsória evolução para se relacionar e disciplinar as relações advindas dessas novidades.
Dentre os esforços da humanidade para se manter em constante avanço tecnológico e os esforços do Estado para se manter financeiramente saudável do ponto de vista arrecadatório, surge o “tilt” entre as tradicionais relações já disciplinadas pelo Estado e as novas relações que diariamente surgem, notadamente pautadas na utilização das novas tecnologias.
Diante de todas essas novidades, os entes públicos, dotados de capacidade tributária ativa para cobrar tributos, buscam entender as relações existentes e classificá-las a fim de enquadrá-las em determinadas categorias, permitindo com isso o exercício das competências tributárias constitucionalmente previstas.
Nesse cenário, a tributação sobre o consumo possui importante papel como instrumento de arrecadação em âmbito nacional, diretamente relacionados à aquisição de produtos ou contratação de serviços.
Dentro das inúmeras espécies de produtos e serviços encontrados no mercado nacional, algumas figuras possuem determinadas características que não permitem uma identificação clara de qual espécie se trata, se produto ou se serviço. É um problema classificatório enfrentado pelo Fisco, pelas empresas e até mesmos pelos contadores.
Um bom exemplo são os produtos/serviços comercializados por meio das mídias digitais, notadamente os softwares, nos quais os Estados e Municípios buscam tributar o mesmo fato gerador, colocando o contribuinte no olho do furacão dessa disputa, haja vista a cobrança de ICMS e ISS para o mesmo fato imponível.
A Constituição Federal, em seus artigos 152, 155 inciso, VII e 170, inciso VII, dispõe expressamente sobre a existência de bens/produtos e serviços. Essa dicotomia é importante, pois dela se extrai um indicativo a respeito do conceito constitucional de mercadoria, que é basilar no âmbito do direito comercial e, consequentemente, tributário.
Em outras palavras, ao se referir a bens, a constituição dá uma conotação de materialidade ou tangibilidade a tal espécie, em contrapartida do serviço, que é por natureza preponderantemente imaterial ou intangível.
Essa diretriz fornecida pela carta magna deve ser utilizada para se analisar a tributação de softwares, notadamente a sua modalidade mais comum, o Software as a Service – SaaS, normalmente atrelado às plataformas de soluções digitais que fomentam o crescimento de empresas, organizações do terceiro setor e governos, além de indivíduos e da economia informal como um todo.
A definição de software é demasiadamente ampla, mas pode-se dizer, em brevíssimas palavras, que é uma sequência de comandos, ou código-fonte, desenvolvidos para serem interpretados por um dispositivo (um smartphone, notebook etc.) com o objetivo de executar tarefas específicas, inclusive seu próprio o funcionamento, como é o caso dos sistemas operacionais.
Software como serviço, do inglês Software as a service (SaaS), é uma forma de distribuição e comercialização de software. No modelo SaaS, o fornecedor do software se responsabiliza por toda a estrutura necessária à disponibilização do sistema (servidores, conectividade, cuidados com segurança da informação), e o cliente utiliza o software via internet, pagando um valor pelo serviço.
Na prática, trata-se de uma relação comercial muito diferente daquela que se verificava há cerca de uma década, na qual o software era adquirido empacotado, em prateleira, para uso exclusivo a partir do dispositivo do próprio usuário, que normalmente era um computador do tipo desktop.
Estando óbvias as diferenças, é importante frisar que, do ponto de vista constitucional, imprescindível é a tangibilidade das mercadorias, o que permite concluir por exclusão, que os softwares da modalidade SaaS, intangíveis por natureza, se tratam de verdadeiro serviço, o que afasta a natureza de mercadoria e, por consequência, a subsunção ao fato gerador do ICMS.
A doutrina já se debruçou sobre o tema e, embasada no sistema jurídico positivado, notadamente a Constituição de 1988, entendeu que a tangibilidade ou materialidade figura como característica hábil à verificação e definição de produto ou serviço.
“Na Constituição de 1988, a atividade econômica também ganhou a relevância de um capítulo, denominado “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”, no Título VII — Da Ordem Econômica e Financeira, onde se garante à atividade econômica seu livre exercício (parágrafo único do art.170). Também a dicotomia bens (produtos) vs serviços pode ser vista, por exemplo, no art. 170, VI, e no art. 173, §1º, explicitando-se o conceito de serviço (bem imaterial) em oposição ao conceito de bens (materiais), ambos completando-se como resultado exaustivo de atividade empresarial”.
Vale destacar que o Código Civil, em seu Artigo 966, também indica a existência de bens e serviços, adotando a dicotomia prevista constitucionalmente:
“Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.”
Não obstante, no julgamento do RE 176.626-3, o STF ratificou o entendimento que define a tangibilidade como característica essencial de mercadoria:
“Estou de logo, em que o conceito de mercadoria efetivamente não incluiu os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo.
Ora, no caso, o que se pretende é a declaração de inexistência de relação jurídica de natureza tributária entre a Autora e o Estado, relativamente, às operações de “licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador: trata-se, pois de operações que tem como objeto um direito de uso, bem incorpóreo insuscetível de ser incluído no conceito de mercadoria e, consequentemente, de sofre a incidência do ICMS”.
Nesse sentido, resta clara a existência de um considerável arcabouço legislativo que permite concluir que a mercadoria deve necessariamente ser tangível e o serviço, por raciocínio inverso, mostra-se intangível.
Há de se salientar que não existe serviço puramente imaterial ou mercadoria puramente material, de forma que seja um ou outro, haverá uma intersecção entre as duas características, em menor ou maior escala, a se verificar nos casos oportunos.
Assim, aliada à ideia de intangibilidade, deve também ser observada sua característica intrínseca, ou seja, se o elemento relevante do serviço é a comodidade ou o que ele proporciona ao seu tomador, de maneira que não rara às vezes ele precisará de um meio físico para ser entregue, tal como ocorre nos quadros em que o pintor imprime sua criatividade, ou até mesmos nos antigos CDs em que os softwares eram comercializados, o que não afasta a natureza de serviço.
No que se refere à padronização ou personalização da atividade como elemento diferenciador, é importante ressaltar que tais características não são respaldadas pelas disposições constitucionais, haja vista que hoje em dia é possível verificar a fabricação personalizada de automóveis e nem por isso deixam de ser mercadorias.
O fato de ser produzido em escala não afronta os contornos constitucionais do conceito de serviço, muito menos aproxima do conceito de mercadoria.
Novamente citando Piscitelli, em doutrina sobre a tributação de mídias digitais, que leciona no mesmo sentido:
Neste ponto, cabe salientar que o conceito constitucional de serviço como bem imaterial não quer dizer que de um serviço não possa resultar um bem material a ser entregue, em algumas situações, porque afinal praticamente não existem somente serviços totalmente puros, nem mercadorias totalmente puras, havendo quase sempre uma mescla de serviços e materiais nos produtos da atividade econômica de produção e de circulação.
Inobstante essas assertivas, o STF decidiu que os softwares ofertados de maneira irrestrita ao mercado, ditos softwares de prateleira, se aproximariam mais dos contornos de mercadoria, ao passo que os softwares feitos de forma individualizada, se aproximaria do conceito de serviço, partindo do raciocínio que prepondera a obrigação de dar em detrimento da obrigação de fazer.
Ora, data vênia¸ o fato de o software ser disponibilizado em larga escala não deve figurar como elemento de conexão, seja com produto ou com serviço, haja vista que o relevante é a comodidade ou utilidade proporcionada ao tomador e, além disso, a quantidade de fornecimento não possui qualquer respaldo constitucional ou infraconstitucional.
Outro relevante argumento que induz ao afastamento da incidência do ICMS sobre os softwares, notadamente os SaaS, diz respeito à falta de transferência definitiva de tais serviços para a caracterização como mercadoria e, portanto, a subsunção ao fato gerador do imposto estadual.
Em outras palavras, certo é que o fato gerador do ICMS prevê a transferência da mercadoria, movimento esse que deve ser feito de forma definitiva ao comprador.
Nesse sentido, ainda que se admita a possibilidade de tributação pelo ICMS de mercadorias imateriais, o que por si só já não se coaduna o texto constitucional, encontra-se um outro óbice ante à falta de transferência definitiva.
A lei que disciplina a Propriedade Industrial, qual seja, Lei 9.609/96, dispõe sobre a proteção do programa de computador e sua comercialização no País.
Pois bem, em seu artigo 9º, prevê de forma clara que o programa de computador será objeto de licença:
“Art. 9º O uso de programa de computador no País será objeto de contrato de licença.
Parágrafo único. Na hipótese de eventual inexistência do contrato referido no caput deste artigo, o documento fiscal relativo à aquisição ou licenciamento de cópia servirá para comprovação da regularidade do seu uso.”
Por sua vez, o contrato de licença de uso é aquele pelo qual o proprietário, ou seja, o desenvolvedor ou Licenciante, àquele que detém os direitos autorais do software, concede a outrem o direito de usar por tempo indeterminado (ad perpetum) e de forma não exclusiva, para uso em seus servidores (equipamento onde serão instalado o software).
O licenciado que adquire a licença de uso do software possui somente o direito de uso e não de propriedade, não podendo este transferir a outrem, comercializar, doar a outrem, arrendar, alienar, sublicenciar e tampouco dar o objeto em garantia.
Dessa maneira, ante à impossibilidade jurídica de alienação de softwares no mercado nacional, resta prejudicada a incidência do ICMS, o qual pressupõe a transferência definitiva para o comprador da mercadoria.
Além dos argumentos acima expostos, não pode se deixar de lado que a Constituição Federal define em seu artigo 156, inciso III, que cabe à lei complementar definir o que é serviço:
“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.”
Por sua vez, o artigo 155, inciso II, fala tão somente em serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação:
“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;”
Assim, os serviços definidos em lei complementar, que não os de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, estarão sujeitos ao Imposto Sobre Serviço – ISS, nos exatos termos em que dispõe a constituição.
Portanto, se a lei complementar definir determinada atividade como serviço, tal como é o caso dos SaaS, com total respaldo constitucional, não cabe a discussão se de fato se enquadra como serviço ou não, criando muitas vezes critérios que não possuem qualquer lastro normativo.
Com base nessa singela análise sobre o cenário atualmente enfrentado pelos contribuintes, verifica-se a conturbada situação ora vivenciada, de forma que não rara às vezes sequer se sabe o que pagar e a quem pagar, principalmente em decorrência da falta de adaptação do Estado às novas tecnologias.
Conforme exposto, o campo para a incidência do ICMS sobre serviços de licenciamento de Software as a Service, é pequeno, haja vista que possui óbices constitucionais e legais, notadamente a sua imaterialidade e a impossibilidade de transferência definitiva, de forma que qualquer evolução na interpretação constitucional de mercadoria consubstanciará em um regresso ou violação na interpretação constitucional de serviços.